Redes Sociais e o Pensamento Centralista

Precisamos apoiar e promover as redes sociais descentralizadas!

Espero que não se ofendam pessoalmente lendo isto, o intuito desse texto é somente fazer uma reflexão quanto ao futuro das redes sociais que queiram prezar pela liberdade de expressão respeitando a propriedade privada, e mostrar como e porquê os libertários poderiam estar colaborando mais para acelerar todo esse processo de descentralização da internet como um todo.

Libertarianismo e Tecnologia

Eu pensei em escrever este texto há um tempo atrás porque é algo que eu já venho observando na comunidade libertária brasileira desde que eu comecei a acompanhá-la com mais frequência ano passado. Acabei não parando para escrever mas o assunto ainda se mantém vivo, que é o fato de vários autointitulados libertários (ou ancaps) ainda possuírem um pensamento centralista quando se trata de tecnologia.

Isso pode soar bem estranho e controverso, já que os libertários são os maiores propagadores da ideia de descentralizar a emissão de moeda através de tecnologias como o bitcoin, mas a verdade é que a ideia praticamente morre aí. Quando se trata de qualquer outra tecnologia descentralizada, ou alguma alternativa de software mais ética (como qualquer software livre), a comunidade libertária praticamente ignora ou simplesmente age como se fosse uma simples questão contratual (“eu quis usar um software não-livre por livre e espontânea vontade, então é um problema exclusivamente meu, até porque eu posso deixar de usá-lo a hora que eu quiser, diferente de um governo compulsório”).

De fato, quando se trata de software, você pode escolher ser ou não ser explorado. Por mais que as vezes haja uma certa pressão social ou profissional para que você faça uso de algum software não-livre (como WhatsApp e Photoshop, respectivamente), você ainda tem uma opção. Porém, não deveria ser resumido dessa forma, principalmente quando está em jogo todo um conceito de sociedade descentralizada, que não vai se realizar se as pessoas continuarem se acomodando e pensando nas coisas de forma centralizada.

Há alguns dias atrás, o Alexandre Porto postou em seu Twitter a seguinte afirmação:

“Todo descentralista é libertário, mas nem todo libertário é descentralista.” [1]

Essa frase parecia confusa e alguém perguntou se a proposição não estaria invertida, então ele respondeu desta forma:

“Eu sou o cunhador patenteado do termo “descentralismo” e centralizadamente garanto que não.“ [2]

Apesar de soar arrogante (e provavelmente ser só uma piada), ele está correto de certa forma. O Alexandre Porto é a única pessoa influente na comunidade libertária que eu conheço que fala em descentralização em vários níveis e de uma forma bastante abrangente, principalmente relacionado a tecnologia. Eu tenho divergências com algumas ideias do Alexandre Porto mas acredito que nós vemos a situação da mesma forma quando ele afirma que nem todo libertário é descentralista. O que ele provavelmente quer dizer é que existem libertários que tem um pensamento descentralista limitado, por exemplo, se limitam ao descentralismo relacionado a economia (livre comércio e moeda), ao conhecimento (desprezo a autoridades intelectuais) e a sociedade (quanto ao individualismo e a secessão individual).

Libertarianismo e Redes Sociais

Ano passado fiquei sabendo da existência de uma rede social chamada Gab através de um amigo não-libertário. Ele me contou que a rede ficou bastante popular entre grupos direitistas, principalmente grupos ultranacionalistas americanos, neocons, e outros grupos de propagação de ódio. O motivo da popularidade era que boa parte desses grupos estava sendo censurado em redes sociais do mainstream, como Facebook e Twitter.

Eu ignorei esse fato porque é comum uma rede social ter esse tipo de repercussão quando acontece uma migração em massa de grupos específicos. A interação lá era mais direitista porque o volume da migração foi tão grande que acabou criando uma bolha. Um bom exemplo disso foi quando criaram o site vid.me, que era um concorrente do YouTube, houve uma grande migração e boa parte das interações no site eram de pessoas postando vídeos falando mal do YouTube (e infelizmente o site foi descontinuado um tempo depois dessa bolha já ter reduzido bastante).

Por fim, eu fui pesquisar sobre esse tal Gab e descobri que era uma rede centralizada e não-livre, ou seja, vai contra tudo que eu acredito, pois código não-livre é algo que pode ser considerado antiético (dependendo do ponto de vista, não irei me aprofundar muito nisso nesse texto) e porque não existe liberdade de expressão assegurada quando se trata de um sistema centralizado, onde o governo e grandes corporações podem tentar pressionar o dono da rede.

Eu nunca cheguei a criar uma conta no Gab, nem mesmo por curiosidade, então só acabei ignorando a existência dele. Recentemente eu fui informado de que, além dos direitistas, vários libertários também acabaram migrando para o Gab para evitar censura. A partir daí eu comecei a ficar cada vez mais desconfiado de que eu estava correto sobre a questão da maior parte dos libertários ainda pensarem de forma centralista quando se trata de tecnologia.

Uma das coisas que corroborou com esse pensamento foi que eu andei analisando a migração de pessoas do Twitter para o Mastodon (rede social descentralizada similar ao Twitter, irei falar mais sobre ela no penúltimo tópico), e a grande maioria dos usuários por lá são grupos LGBT e feministas (“progressistas” em geral). Eu não vou me aprofundar tanto nisso porque já comentei recentemente no Twitter sobre esse assunto [3], mas a parte importante é que a comunidade libertária do Mastodon é menor do que a comunidade de anarco comunistas (ironicamente até a comunidade de k-pop é maior do que a comunidade libertária) [4].

Esse fato é contraditório em vários níveis. Primeiro porque os ancoms estão usando a propriedade deles para manter um servidor e ativamente banir ancaps [5], ou seja, usando o direito deles de livre associação. E segundo porque a maior parte dos usuários do Mastodon está lá pelos recursos que o Twitter não possui (como o Content Warning), e não porque a plataforma é descentralizada, essa questão acaba sendo só um mero detalhe.

O criador do Mastodon pensou em criar a plataforma como uma alternativa mais ética (em termos de software livre), e o fato dela ser descentralizada não estava diretamente relacionado com anarquia, mas sim com o péssimo comportamento das grandes corporações donas das redes sociais do mainstream. Mesmo que o criador não seja libertário, os libertários seriam os mais favorecidos com a plataforma, já que ela preza pela descentralização de poder, porém a maioria dos libertários a ignoraram.

Libertarianismo e o Hype

Um dos motivos de eu ter retomado a ideia de fazer um texto sobre esse assunto foi que recentemente surgiu um hype na comunidade libertária sobre uma nova rede social chamada Sibiter. Uma rede social aparentemente baseada no sistema WoWonder, onde você compra o código-fonte da rede social pronta, customiza algumas coisas e hospeda em algum servidor [6]. E essa rede social teria a liberdade de expressão plena como propósito. O problema principal com o conceito dela é que seria só mais uma rede social centralizada e não-livre (em termos de código-fonte), ou seja, mais uma vez os libertários estariam apoiando uma iniciativa que conflita com os conceitos de descentralização que a comunidade deveria apoiar.

Eu não tenho certeza quais foram os motivos que levou boa parte dos libertários a apoiar isso tão fervorosamente, só posso conjecturar algumas coisas. Por exemplo, eu imagino que talvez as pessoas se empolgaram pelo criador ter afirmado que ele criou a rede social pelo movimento da liberdade de expressão e tal, então todo mundo deve ter apoiado como se estivessem valorizando o trabalho 100% original dele (o que seria justo até). Ou talvez os libertários acham que, só por não ser parte do mainstream, já daria para considerar como descentralizado. Uma das coisas que eu notei e posso assertar é que quem estava entrando nessa rede estava ficando empolgado porque o nível de interação estava maior do que o de uma rede do mainstream, o que poderia ser explicado pelo exemplo de bolha que eu já demostrei no tópico anterior, e que poderia ser reproduzido facilmente.

Eu não pretendo apoiar essa rede da forma como o conceito dela foi apresentado, mas não é nada pessoal, acho que o criador da rede só tentou ajudar com boas intenções mas com as ideias erradas. De qualquer forma, os problemas foram, e ainda estão sendo, ofuscados pelo hype que foi criado, isso quer dizer que não importa se as intenções são boas, quando você tem a mistura de um software não-livre com um sistema centralizado, você nunca tem como garantir nada.

O que deve ser feito

A resposta curta é óbvia: apoiar iniciativas descentralizadas.

Na resposta longa eu vou falar um pouco sobre a situação atual das redes sociais descentralizadas, visando esclarecer algumas coisas para quem ainda não sabe muito sobre o assunto.

Antes de eu me considerar libertário (no sentido austríaco) eu já possuía vários ideais libertários mesmo sem saber muito sobre o libertarianismo. Isso porque, além da parte anti-estado/antinacionalista, eu já havia sido introduzido ao movimento do software livre há alguns anos atrás pelas questões éticas e não pelas questões utilitárias (como a maioria das pessoas hoje em dia). Eventualmente eu comecei a me interessar por tecnologias descentralizadas (e ironicamente o meu interesse por criptomoedas veio depois do interesse pelas redes sociais descentralizadas) e desde então eu não lido mais com nenhuma rede social centralizada que eu já não tivesse uma conta antiga ativa.

Por essas e outras razões eu posso parecer meio lunático quando se trata de software livre e descentralização, da mesma forma que o Alexandre Porto parece muitas vezes, mas o ponto é que o software livre e a descentralização são essenciais para qualquer tipo de ativismo que luta contra um poder centralizado (como o monopólio da força estatal).

Quando você tem um software que possui um dono (seja esse dono uma única pessoa ou uma corporação), é muito fácil para o estado tentar intervir porque ele tem um alvo conhecido. Diferente do software livre que não possui um dono específico, então o estado pode até tentar atacar mas jamais irá conseguir destruir ele por completo. É como uma Hydra (o ser mitológico), quando você corta uma cabeça, duas crescem no lugar.

O maior exemplo de rede social descentralizada que temos hoje é o Fediverso (uma junção de “federação” e “universo”, Fediverse no inglês), que é uma iniciativa de unir vários tipos diferentes de redes sociais no mesmo universo de uma forma federalizada, ou seja, da mesma forma que o federalismo “pleno”, como na secessão individual, e respeitando a livre associação. Na prática, isso quer dizer que você pode hospedar a instância da sua própria rede social, e mesmo assim você ainda pode interagir com a instância de outras pessoas ou grupos. Cada uma dessas instâncias pode conter um ou mais usuários e o administrador tem todos os poderes para decidir quem pode ou não entrar, e com quais outras instâncias ele vai querer se associar.

O principal sistema do Fediverso é o Mastodon (que já foi citado acima), que possui atualmente mais de 2600 instâncias ativas. A principal instância dele é o mastodon.social com aproximadamente 320 mil usuários. Além do Mastodon, existem também alguns outros sistemas similares (micro-blog estilo Twitter), como o Misskey, Pleroma e GNU Social. A comunidade de libertários que eu citei previamente é uma instância do Mastodon chamada Liberdon (gerenciada pelo Liberty for the Masses).

Além de micro-blog, existem também outros serviços dentro do Fediverso, como o PeerTube (YouTube descentralizado), PixelFed (Instagram descentralizado), Funkwhale (Spotify descentralizado), Plume (Medium descentralizado) e Friendica (Facebook descentralizado).

Se você não estiver satisfeito, ainda tem a opção de criar a sua própria rede social com suporte a federação dentro do Fediverso, basta ser um programador (ou pagar um) e seguir os protocolos definidos no ActivityPub (regras definidas para que as instâncias consigam se comunicar entre si).

Conclusão

Há alguns anos atrás eu pensei que as redes sociais descentralizadas não iriam dar certo tão cedo, mas elas estão por aí e são capazes de competir com o mainstream. Temos que aproveitar o momento para torná-las mais úteis para a comunidade libertária.

Espero que esse texto tenha sido útil de alguma forma. Além disso, eu gostaria de indicar alguns sites e vídeos de apoio que podem explicar mais algumas coisas relacionado a descentralização e redes sociais descentralizadas:

Vídeos

  1. Artigo 11 e Artigo 13, finalmente uma nova internet | O Ancaporco https://www.youtube.com/watch?v=ekgAG_TUSfg
  2. Censura e Mídias Sociais Descentralizadas | Victória Hikari https://youtu.be/exogDCrtLjw
  3. Pacto Federativo: Descentralização do Poder | Ideias Radicais https://www.youtube.com/watch?v=XLu0ooNtRuY

Sites

  1. Switching Social | ethical, easy-to-use and privacy-conscious alternatives https://switching.social/
  2. AlternativeTo | Crowdsourced software recommendations https://alternativeto.net/

Referências

[1] Tweet do Alexandre Porto 1: https://twitter.com/PortoAncap/status/1131402778193088512

[2] Tweet do Alexandre Porto 2: https://twitter.com/PortoAncap/status/1131403340993241088

[3] Thread do Twitter sobre redes descentralizadas e política: https://twitter.com/tumeo_/status/1134131065503789056

[4] Status das instâncias do Mastodon https://fediverse.network/mastodon

[5] Termos de uso do Anarchism.space banindo ancaps https://anarchism.space/terms

[6] WoWonder - PHP Social Network Script https://www.wowonder.com/