A relevância das identidades de gênero pessoais

Ou "conceitos que deveriam ser mais usados em suas teorias de gênero pra você não repetir retórica cissexista e/ou exorsexista".

Aviso de conteúdo: cissexismo, diadismo, misoginia e imposição de papéis de gênero. Menciona genitálias e outras características consideradas sexuais.



Vocabulário

Cissexismo: O sistema que impõe que crianças são designadas algum gênero em seu nascimento (por conta de uma genitália que nasceram ou que mutilaram para parecer "mais normal"), e que tal gênero está certo e deve ser visto como a identidade de gênero verdadeira daquela pessoa durante toda sua vida. Cissexismo impõe que ser cis (alguém que vê esta designação ao nascimento como correta e que sempre teve um corpo considerado correto para tal imposição de gênero) é ser normal, superior e um ideal a ser forçado em outras pessoas.

Diadismo: O sistema que impõe que só existem duas corporalidades naturais. Uma que tem cromossomos XX, vagina, útero, ovários, altos níveis de progesterona e estrogênio, níveis baixos de testosterona, e consequências esperadas destes hormônios (crescimento de seios, nenhuma barba, pelos finos, certas curvas no corpo, menos facilidade em construir massa muscular, ciclo menstrual). Outra que tem cromossomos XY, pênis, testículos, níveis altos de testosterona, e consequências esperadas disso (barba, pelos grossos nenhum crescimento de seios, corpo relativamente reto que constrói massa muscular facilmente).

O que desvia disso de forma aparente deve ser consertado com hormônios e/ou cirurgia, e tanto o que for quanto o que não for aparente deve ser categorizado como doença; como algo que não ocorre naturalmente e que na verdade seria um desvio de uma dessas corporalidades padrão (e não categorias diferentes delas).

Diadismo justifica o tratamento pior de pessoas intersexo, que são as que não se encaixam nas duas corporalidades citadas sem terem passado por modificações corporais (ou que se encaixariam se não tivessem passado por modificações). Pessoas que se encaixam em uma das duas corporalidades citadas são perissexo.

Exorsexismo: O sistema que prejudica qualquer pessoa que não é somente, completamente e sempre homem ou somente, completamente e sempre mulher. Isso somente em relação à sua identidade de gênero (não depende de sua corporalidade ou de como é vista por outras pessoas). Basicamente significa "opressão contra pessoas não-binárias", mas é mais do que isso porque nem todas as pessoas que preenchem estas descrições se dizem não-binárias (ainda que possam usar o termo se quiserem).

Expressão de gênero: A forma que alguém expressa seu gênero ou alguma característica dele por meio de roupas, jeito de falar/gesticular, maquiagem, acessórios, conjunto(s) de linguagem ou afins. Pessoas que consideram que sua expressão de gênero não se encaixa em sua identidade de gênero (ou ao menos nos papéis impostos a ela) podem se dizer não-conformistas de gênero ou inconformistas de gênero. Algumas pessoas veem a própria expressão de gênero como feminina, masculina, andrógina, neutra, xenina ou etc., outras não a rotulam.

Identidade de gênero: O termo ou o conjunto de termos que alguém usa para se referir à relação que tem com gênero. A identidade de gênero de alguém pode ser um gênero (como homem, mulher, maverique ou nímise), pode ser uma ausência de gênero (como gênero-vácuo ou sem gênero), pode ser parte de um gênero (como nanogênero ou demigênero), pode ser mais de um gênero (como bigênero ou poligênero) ou pode ser alguma outra coisa que alguém pense sobre gênero ou sobre sua relação com o conceito (como quoigênero, casgênero ou apogênero).

Identidades de gênero não são específicas a pessoas trans, a pessoas não-binárias ou a pessoas com um gênero. Cis e trans também não são identidades de gênero, e sim modalidades.

Misoginia: O sistema que impõe que mulheres são inferiores, e que incentiva ódio e desprezo contra mulheres, além de justificar tratamento pior (como salários menores ou restrições do que podem vestir, de com quem podem sair ou de no que podem trabalhar). Muitas vezes, se utiliza alguma justificativa supostamente biológica cissexista e diadista para perpetuar isso, como hormônios e massa corporal, mas é muito mais uma imposição cultural do que algo justificável.

Papéis de gênero: Imposições sociais sobre como cada gênero deve agir, incluindo coisas como roupas, gostos, orientações (no sentido de por que gêneros/como se atraem) e emoções. Pessoas que saem destas normas são excluídas de grupos/espaços e/ou pressionadas a se encaixarem em seus papéis, embora o quanto cada papel é considerado importante depende bastante da circunstância.

Patriarcado: O sistema que impõe que homens são superiores, líderes naturais e o gênero padrão. É um sistema que prejudica pessoas de qualquer outra identidade de gênero.

Para explicações relacionadas ao que significa privilégio, opressão, discriminação, política identitária e afins, sugiro ler este texto. Para explicações sobre o que é trans, não-binárie e intersexo, sugiro procurá-las nesta página e seguir os links para cada termo caso haja a necessidade de explicações mais detalhadas.



Introdução

Um monte de gente - geralmente feministas radicais ou pessoas com ideias adjacentes - coloca gênero como uma simples estrutura de poder violenta, que coloca homens ou pessoas percebidas como homens no topo e mulheres ou pessoas percebidas como mulheres embaixo. Justificam isso com a origem dos papéis de gênero em contextos patriarcais ocidentais, e com o sistema misógino e exorsexista que ainda existe nos dias de hoje.

Estes argumentos partem de visões afetadas pela cultura cristã europeia e sua imposição em boa parte do mundo por conta do colonialismo, e são sobre tais sociedades eurocêntricas. Portanto, para não me repetir, quero que tenham em mente que o texto vai focar nisso, sem falar de sistemas de gênero que não são binários e/ou que não envolvem opressão de um ou mais grupos envolvidos ou usá-los como justificativa, ainda que tais sistemas existam.

Como coloquei ali no vocabulário, patriarcado e misoginia são questões reais. E eu também concordo que nem sempre quem é beneficiade pelo patriarcado é homem, ou quem sofre por conta de misoginia é mulher.

Só que a questão é bem mais complexa do que só separar todas as pessoas em dois grupos e ignorar suas identidades de gênero.

Opressão/discriminação maldirecionada

Existe o conceito de opressão/discriminação maldirecionada, que é quando alguém acaba sendo alvo de alguma opressão/discriminação mesmo que não faça parte do grupo afetado.

Como qualquer discriminação, às vezes é alguma microagressão leve que não vai fazer diferença na vida de alguém justamente por ser maldirecionada (por exemplo, alguém xingando ou "elogiando" na rua usando algum termo estigmatizado contra pessoas de um grupo ao qual alguém não pertence, sendo que não parece que a pessoa vai fazer algo mais violento). Mas às vezes pode ser algo sério (por exemplo, uma mulher cis ser expulsa de um banheiro por "não parecer fêmea" por não aderir a papeis de gênero femininos).

Geralmente, quando é algo sério (mas isso pode acontecer nos casos mais leves também), a ação pode ter sido maldirecionada, mas a pessoa ainda está sendo afetada por algum tipo de opressão.

Isso acontece quando uma mulher ipsogênero (intersexo, mas que se identifica totalmente com o gênero designado ao nascer) e/ou com expressão de gênero masculina é expulsa de algum lugar por acharem que é uma mulher trans. A pessoa pode ter sido atacada pelo motivo errado, mas o policiamento de gênero com base em "só deixarem mulheres de verdade entrarem" também acaba afetando outras pessoas que não são vistas como "mulheres de verdade" por outros motivos.

A mensagem "você não é mulher de verdade porque você é trans; porque te criaram como homem" não afeta uma mulher cis/ipso. Porém, a mensagem "você não parece mulher de verdade por conta de seu corpo/de sua expressão de gênero" ainda pode ser internalizada.

A mesma coisa acontece quando uma pessoa é alvo de misoginia ainda que seja homem trans ou pessoa não-binária designada mulher ao nascimento. Isso pode não afetar a pessoa como mulher por não ser mulher, mas ainda afeta de forma cissexista; "você é só mulher e sua identidade não importa", "você merece ser tratade como mulher", "você deveria se identificar como mulher".

Eu ainda acho que tem valor chamar uma situação de transmisoginia (misoginia direcionada a mulheres trans/pessoas transfemininas) maldirecionada, e a outra situação de misoginia maldirecionada. Mas acho importante destacar que mesmo discriminação maldirecionada ainda pode alimentar opressões que realmente afetam a pessoa.

Mensagens internalizadas

Muitas vezes, especialmente para tentar invalidar a opressão de certos grupos, se simplifica opressão como "você pode apanhar na rua por ser tal coisa", "podem te expulsar de casa por ser tal coisa" e/ou "é ilegal ser tal coisa".

Estes são exemplos de opressão, e são exemplos de coisas sérias que podem acontecer por ser de um grupo marginalizado. Mas não são os únicos indicadores ou as únicas consequências de opressão.

Existem outras questões externas que compõem opressão (como ter maior chance de ser prese, salários menores nos mesmos cargos, maior chance de exclusão social ou menor chance de conseguir empréstimos, moradia, estudos, guarda de filhes ou empregos), mas também existem consequências internas.

Mensagens sobre quais grupos são bons ou ruins e quais são as características de cada grupo são transmitidas de diversas formas. Palavras podem ser usadas como xingamentos, e aí crianças entendem que ser aquela coisa é ruim, ainda que só depois passem a entender ao que tais palavras se referem. Estereótipos na mídia (filmes, séries, desenhos animados, livros, propagandas, novelas, etc.) podem ser usados para colocar que um tipo de grupo é estranho, inconveniente e/ou perigoso, sem mostrar quaisquer circunstâncias que justificam o motivo de tais pessoas serem assim ou serem vistas assim.

Assim, pessoas que não fazem parte dos grupos que são marginalizados aprendem a vê-los como diferentes, e podem ou não trabalhar para não perpetuar discriminação contra eles no futuro caso aprendam que as mensagens que absorveram ao longo da vida eram injustas.

Enquanto isso, pessoas que fazem parte dos grupos marginalizados absorvem que elas são ruins ou piores por fazerem parte de tais grupos. Talvez passem a ver isso como propaganda opressiva, mas não só essas mensagens estão enraizadas, como também sabem que outras pessoas veem aquilo como a realidade, e não como algo tendencioso e injusto.

A saúde mental de alguém pode ser muito afetada por alguém não se achar capaz de fazer o que quer fazer, por se achar suje e se sentir isolade e errade em sua forma de ser, pensar, querer ou agir, por saber que não está dentro dos padrões do emprego (ou de outro tipo de cargo) que quer, por querer relacionamentos (sejam eles românticos, de amizade, sexuais, queerplatônicos ou o que for) mas saber que a maioria das pessoas detesta uma parte fundamental do que faz a pessoa ser ela, por ter que escolher entre não revelar parte de sua identidade e ser estereotipade e/ou alvo de chacota, ou outras coisas do tipo.

Voltando especificamente para a questão de gênero: quem é mulher vai internalizar que todo esse ódio e desprezo contra mulheres se refere a si, mesmo que outras pessoas não vejam a pessoa como mulher. Quem não é mulher não vai internalizar isso como algo que se refere a si.

Quem é não-binárie internaliza que não ser homem ou mulher não existe ou é algo extremamente raro, geralmente reservado a quem não é humane, e, mais especificamente, a espécies sem genitália ou fusões de homem com mulher. Pessoas não-binárias também internalizam que não há forma de se referir a alguém que não seja usando linguagem associada a homens ou a mulheres, em línguas com pronomes ligados a gênero. Também internalizam que, se relacionamentos geralmente são entre um homem e uma mulher, ou, talvez, muito raramente, entre dois homens ou duas mulheres, provavelmente não vão achar ninguém no futuro que se interesse nelas.

E, mais especificamente, pessoas podem internalizar que não se identificar com nenhum gênero é errado, que não faz sentido ter um gênero completamente diferente de homem e de mulher, que não faz sentido ser homem e mulher ao mesmo tempo, que todas as pessoas só possuem um gênero ao longo de suas vidas, que experiências de gênero fracas, parciais ou adjacentes são frescuras inexistentes ou supérfluas e afins.

Em questão de homens, ainda que não haja necessariamente uma questão de opressão a ser internalizada, ainda existem papéis de gênero que serão internalizados, e a falha em preenchê-los pode também afetar negativamente a vida de alguém.

Tais mensagens podem ser internalizadas mesmo antes dessas pessoas saberem que são tais identidades de gênero. Elas prejudicam pessoas que não foram designadas com tais gêneros ao nascimento tanto por internalizarem que são algo ruim quanto por pensarem que não deveriam querer ter identidades de gênero "ruins". E isso vem junto com o cissexismo internalizado dessas pessoas serem criadas para acharem que só podem ser seu gênero designado, ou que se não se sentem confortáveis nele é por alguma doença, "degeneração" ou qualquer outra coisa vista como errada.

A questão da autoidentificação

Ainda que mensagens negativas possam ser internalizadas sobre não ser homem ou sobre ter uma identidade de gênero diferente da designada, elas não são as únicas mensagens relacionadas a gênero que são internalizadas. Embora opressão ou visões negativas sobre certas identidades de gênero possam influenciar a identidade de gênero, gêneros também são uma série de arquétipos nos quais pessoas podem se ver ou não se ver.

Tais arquétipos não são somente papéis de gênero, pois muitas pessoas (inclusive pessoas trans) são firmemente homens e mulheres mas não seguem tais papéis, ou os subvertem. A mesma coisa vale para expressões de gênero. Cada pessoa vai ter seus próprios motivos para ver sua identidade de gênero como sua, e os mais diferentes motivos são válidos.

A questão é, se uma pessoa não é algo - e sim, isso conta as pessoas que não se identificam com algo mesmo sendo vistas como tal - a pessoa não vai internalizar mensagens direcionadas a tal grupo, positivas ou negativas. Podem até saber que elas existem e que deveria se ver nelas, e podem até afetar a pessoa de outros pontos de vista (como os exemplos dados sobre misoginia maldirecionada acabar ressoando como cissexismo para quem não é mulher mas foi designade como mulher ao nascimento), mas não vão ser absorvidas da mesma forma.

Se gênero fosse só uma questão de opressão externa, não existiriam mulheres trans ou tantas identidades não-binárias. Por que alguém se identificaria como algo que é só visto como ridículo ou inferior, se não houvesse verdade nenhuma sobre gênero além disso?

Não vale dizer que é só expressão de gênero ou identificação com papéis de gênero, quando a maioria das pessoas cisdissidentes sabem muito bem que inconformidade de gênero existe (e muitas vezes se identificam com esse conceito antes de se descobrirem trans); e mesmo as que não sabem e que realmente são pessoas cis inconformistas de gênero geralmente acabam percebendo que ser trans não é pra elas. Também não vale dizer que é modinha ou querer chamar atenção quando qualquer atenção que isso realmente atrai é negativa.

Mas e a opressão externa, então?

Novamente: eu acredito que, em determinadas situações, pode fazer toda a diferença uma pessoa ser vista como homem ou como mulher, ainda que sua identidade de gênero seja algo diferente disso.

Porém, muita gente está tão preocupada com isso acontecendo que ignora toda a questão sobre a opressão internalizada, ou a questão de como tal opressão externa realmente age.

Um exemplo clássico usado como contra-argumento contra pessoas cissexistas é que existem pessoas trans que "não parecem trans". Um homem trans pode, por exemplo, mudar seus documentos, tomar testosterona e fazer uma cirurgia para remover seios, fazendo com que sua documentação e seu corpo pareçam externamente iguais aes de um homem cis. E isso pode fazer com que tenha mais chances de ganhar empregos que não seriam vistos como "próprios para mulheres", de evitar assédio sexual, de não ser questionado sobre seus conhecimentos ao comprar coisas relacionadas a carros ou construções e afins.

Mesmo assim, muitas pessoas param aí, na questão de pessoas binárias que sempre passam, e, quando se trata de pessoas não-binárias, perpetuam exorsexismo de uma forma chamada de reducionismo de gênero.

Reducionismo de gênero é a ideia de que pessoas não-binárias até podem se identificar fora do binário de gênero, mas socialmente vão ser sempre categorizadas só como homens ou só como mulheres, e precisam admitir este alinhamento para "serem realistas".

A maioria das pessoas não-binárias pode ser, sim, lida como homem ou como mulher. Mas isso não significa que isso é algo estável ou que precisa ser aceito como parte da identidade pessoal.

Existem pessoas que possuem "aparência andrógina" suficiente para que seja muito dependente do ambiente e da expressão de gênero atual se a pessoa vai ser tratada como homem ou como mulher. Existem pessoas que vão começando e parando de usar hormônios de forma que às vezes vão passar como mulheres e às vezes como homens. Existem pessoas que são vistas como pessoas trans binárias em certos ambientes e como pessoas cis em outros ambientes (sendo que tal percepção de qual gênero é "trans" ou "cis" para a pessoa pode nem se alinhar com qual foi realmente o gênero designado à pessoa). Existem pessoas que são percebidas e tratadas como certo gênero binário até falarem.

Existe também o tratamento de ser "aquilo", de ser uma coisa que não é homem nem mulher, geralmente em relação a pessoas que são lidas como inconformistas de gênero em relação a algum gênero binário.

Ou seja, querer que todo mundo simplesmente se entregue a um sistema de categorização binário porque "a sociedade só vê isso" ignora que nem sempre tal sociedade consegue concordar em qual é a categoria binária que cada pessoa se encaixa.

A luta contra opressão de gênero

Tudo bem apontar que gênero é uma construção social que depende de cada sociedade, e que é muitas vezes usado para opressão ou para justificar opressão/discriminação e que isso é errado. Lutar para a abolição da designação de gênero ao nascimento, para que pessoas não tenham gênero em documentos em geral, para que pessoas intersexo não passem por mutilação genital ou hormonização forçada para se conformarem ao ideal diadista e cissexista do que é um gênero binário, e para que pessoas possam vestir, agir e se expressarem como quiserem é algo importante e necessário.

Só que isso pode ser feito sem que identificação pessoal seja desrespeitada.

Dizer que gênero só serve para justificar opressão e violência é ignorar como pessoas cisdissidentes usam e veem gênero, como se gênero não pudesse ser visto de forma diferente da cisnorma colonialista e quem não entende isso está só contribuindo com o sistema e/ou demonstrando ignorância. E isso é uma forma de violência cissexista.

Eu não sou contra fazer com que identidade de gênero seja cada vez mais um fator sem significância e que a maioria não precise participar. Também não sou contra alguém se identificar (ou alinhar) com um gênero apenas por conta de questões políticas.

No entanto, não vejo motivos pelos quais pessoas não possam lutar para que gênero deixe de ter expectativas, valores e obrigatoriedade sem... falar que gênero é algo inútil e ridículo que não existe e que só serve pra definir opressão e que quem quer descobrir sua identidade de gênero e está tentando ver isso como algo positivo e com múltiplas possibilidades está contribuindo com estereótipos patriarcais e ignorando que imposições e estereótipos de gênero são ruins para grande parte da população mundial.

Muitas pessoas não-binárias acabam se sentindo alienadas de lutas feministas por conta de suposições exorsexistas e patriarcais em relação a gênero e opressão por gênero. O movimento feminista é importante e ajudou a desenvolver vários conceitos relacionados a opressão, e tem muito em comum com a luta não-binária contra imposição de gênero e liberdade para definir a própria identidade de gênero. Só que, quanto mais pessoas utilizam argumentos cissexistas e exorsexistas em nome do feminismo e da "realidade material", menos pessoas não-binárias vão se sentir à vontade em consumir conteúdo feminista e participar de grupos feministas, o que acho que é uma perda para os dois lados.

Considerações finais

  • Não adianta superficialmente dizer "pessoas não-binárias existem" e "pessoas trans são válidas" só pra depois dizer que certas identidades de gênero "não são materiais", que "identificação pessoal não é mais importante do que como a sociedade trata", que "todo mundo sente atração por pessoas não-binárias porque o que importa é se se atraem por quem parece homem, por quem parece mulher ou os dois", e afins;

  • O que uma pessoa internaliza geralmente tem mais a ver com sua identidade real do que com a identidade que a sociedade vê;

  • A sociedade não necessariamente trata pessoas de forma uniforme, então "mas as pessoas te leem como tal coisa" ou "te designaram como tal coisa ao nascimento" não são justificativas para forçar um alinhamento binário em uma pessoa;

  • Identidade de gênero pode ser afetado por pressões externas, mas isso não significa que a de todo mundo é formada pela opressão que sofre, e isso também não significa que apenas a opressão de gênero pode ser um fator que "modifica" a identidade de gênero de alguém. Pessoas neurogênero, nulagênero e intergênero existem, entre outras;

  • Exormisoginia (misoginia contra pessoas não-binárias que se consideram mulheres de alguma forma ou em algum aspecto) existe. Transmisoginia também. Intermisoginia (misoginia contra mulheres intersexo) também. Assim como não existe uma vivência universal de mulheres cis e binárias por conta de fatores como raça, deficiência, poder aquisitivo, (in)conformidade de gênero, orientação e afins que precisa ser levada em consideração quando se fala de mulheridade e misoginia, as vivências de mulheres trans, não-bináries e intersexo também são importantes;

  • Teorias sobre opressão se aplicam a contextos gerais, não necessariamente às vidas individuais de cada pessoa. Assim como não é uma contradição a existência de líderes políticas mulheres em países misóginos, não dá pra forçar narrativas sobre o que gênero é, deve ser, pode ser interpretado e serve como forma de opressão que vai ser verdade para todas as pessoas como indivíduos, mesmo que sirvam para bastante gente.