Descompactando heterossexismo

Informações básicas, incluindo algumas pouco exploradas em várias discussões, sobre os componentes do heterossexismo e suas relações com outros sistemas de opressão.

Recomendação de leitura: Caso não tenha lido tal postagem ainda, recomendo que leia Vocabulário usado em círculos NHINCQ+ inclusivos. Vários termos citados são explicados aqui ou possuem links, mas acho que será mais fácil absorver as ideias principais do texto caso e leitore já saiba o que é uma orientação a-espectral, o que é uma orientação fluida, o motivo de "atração por gêneros diferentes" não ser uma definição adequada para hétero, e outras informações consideradas básicas para o assunto.

Aviso de conteúdo: Este texto explora heterossexismo e suas diversas vertentes, e contém exemplos de tudo isso. Também contém exemplos de sexonormatividade, amatonormatividade, cissexismo, diadismo e policiamento de gênero. Há algumas leves descrições (relativamente clínicas) de atos sexuais, coerção sexual e cirurgias em genitálias.

Heterossexismo é uma palavra que raramente precisa de explicação: afinal, pessoas que se deparam com ela geralmente já sabem o que é hétero (alguém binárie que sente atração somente pelo outro gênero binário), heterossexual (alguém hétero pelo menos em relação a orientação sexual) e sexismo (que, apesar do nome, geralmente é uma palavra utilizada em relação a opressão por gênero). Mesmo que alguém não tenha tido contato com a palavra sexismo ou com outras palavras que usam sexismo como sufixo, a familiaridade com os significados de palavras como racismo e machismo podem ajudar a dar contexto para qual deve ser o significado de heterossexismo.

Mesmo assim, isso não significa que não há nenhum lugar que defina heterossexismo por si só. Nestes casos, se define heterossexismo como algo em torno de "o sistema que oprime qualquer orientação que não seja hétero". Esta é uma boa definição e não pretendo desafiá-la, e sim elaborá-la.

O que vejo acontecer em muitas discussões é a redução de heterossexismo apenas a subtipos específicos de sua definição. Isso pode acontecer de forma maliciosa, mas também acontece sem querer, especialmente quando o conhecimento de tantas pessoas a respeito do assunto é pouco desenvolvido. O propósito deste texto é oferecer perspectivas mais incomuns sobre o que heterossexismo também engloba.

1. Duaricismo

Eu cunhei duaricismo para significar, basicamente, "a priorização de atrações e relacionamentos duáricos acima de outras possibilidades". Duárique também foi uma palavra que cunhei (ainda que com opiniões envolvidas de pessoas duáricas), e significa que alguém é de um gênero binário e sente atração pelo outro gênero binário, exclusivamente ou não. Um relacionamento entre um homem e uma mulher também pode ser chamado de duárico, assim como um relacionamento entre duas pessoas não-binárias pode ser chamado de enebeano.

A necessidade da cunhagem e do uso de duárique é a mesma necessidade da cunhagem e do uso de outros termos juvélicos: muitas vezes, há a necessidade de falar de um relacionamento ou de uma atração de forma específica, ainda que isso possa não representar a orientação inteira do(s) indivíduo(s).

Por exemplo, é comum haverem discussões sobre pessoas multi (que sentem atração por mais de um gênero) e o que acontece quando estão em relacionamentos duáricos. Chamar tais relacionamentos de "relacionamentos entre um homem e uma mulher" acaba sendo longo demais pra muitas pessoas, que preferem resumir isso como "relacionamentos hétero". Mas isso por si só traz a conotação de que a orientação que uma pessoa multi tem é definida por sue(s) parceire(s) atual(is), o que é uma forma comum de apagamento.

Da mesma forma, pessoas podem querer palavras para descrever que só sentiram atração por um gênero mas que não sabem se sentem atração por outros gêneros, ou para descrever a atração de personagens que não possuem orientação confirmada. E este vocabulário é útil mesmo em um contexto onde esta atração pode ser vista como "desinteressante", "normativa" ou "mais privilegiada".

Enfim, duaricismo é uma questão dentro de heterossexismo. Duaricismo inclui ver a atração duárica de alguém multi como mais real ou concreta do que outras atrações. Duaricismo inclui leis que só reconhecem casais formados por um homem e uma mulher. Duaricismo inclui a noção de que um beijo entre um homem e uma mulher é sempre mais inocente e romântico do que o mesmo beijo entre outras combinações entre gêneros. Duaricismo internalizado inclui demorar se perceber como alguém que não é duárique, mesmo após reconhecer ter atrações por outros gêneros.

Para quem já entrou em contato com vários materiais sobre heterossexismo, pode ser que todos estes exemplos já tenham sido absorvidos como exemplos de heterossexismo. Isso é porque duaricismo é uma parte da estrutura do heterossexismo. Porém, o erro cometido por muites é ver duaricismo como a única força que existe dentro do heterossexismo.

2. Alossexismo

Alossexismo (ou zedsexismo, para quem não gosta da palavra alossexual por suas origens) é a crença de que existe um nível normal e ideal de atração, especialmente (nas teorias até o momento) em relação às atrações sexual e romântica. É a priorização da atração de forma alo em detrimento das diversas possibilidades da a-espectralidade (característica do que é a-espectral; de pessoas que são assexuais, arromânticas, gris/gray, demi, lith, etc).

Alossexismo faz parte do heterossexismo porque quem não é alo não é viste como hétero. Ao menos não da forma que a heteronorma constrói o que é ser hétero.

Para acentuar que pessoas a-espectrais não são favorecidas completamente pela heteronorma ainda que sejam hétero em algum aspecto, existe gente que usa "alo-hétero" ou "heterossexual heterorromântique alo" ou similar para indicar que estão considerando alossexismo ao indicar qual é o grupo mais privilegiado em relação a orientações. Pessoalmente, eu não me importo em usar apenas hétero (ou completamente/somente hétero), porque o que indico com isso é que essas pessoas só podem ser descritas precisamente como hétero, enquanto uma pessoa arromântica heterodemissexual (entre outras possibilidades) não pode descrever precisamente sua orientação apenas como hétero.

Dentro de um sistema alossexista, pessoas que não sentem atração são vistas como pessoas que não sentiram atração ainda, ou como pessoas que estão escondendo algo. Pessoas que só conseguem sentir atração quase imediata de vez em quando ou nunca são vistas como reprimidas ou excessivamente determinadas a "se guardarem para a pessoa perfeita"; pessoas que nunca conseguem sentir atração quando se trata de pessoas conhecidas/interessadas são vistas como medrosas ou potencialmente abusivas. E todos estes casos são frequentemente vistos como questões a serem resolvidas.

Existe a questão da falta de atração ser ocasionalmente percebida como a possibilidade de ser gay/lésbica. Algumas pessoas usam isso para indicar que alossexismo não existe, ou não está dentro da heteronorma; "é só homomisia maldirecionada". Mas a questão de identidades a-espectrais serem percebidas como não-hétero precisa ser considerada por si só, e não só porque ela pode estar acompanhada de percepções limitadas sobre que orientações alguém pode ter.

Grupos a-espectrais e hétero podem perpetuar duaricismo. Grupos heterodissidentes e alo podem perpetuar alossexismo. Grupos a-espectrais que não são hétero podem sofrer tanto com alossexismo quanto com duaricismo. Mas todos estes grupos são afetados pela existência do heterossexismo estrutural.

3. Monossexismo

Monossexismo é, dependendo de quem definir, o sistema que prioriza atração por um gênero, ou o sistema que coloca gay/lésbica e hétero como os únicos, mais importantes ou mais dignos "polos" de atração. Eu deixei monossexismo para depois de alossexismo porque é uma questão que acredito que seja mais complexa, especialmente porque existem questões dentro de monossexismo que ainda não foram nomeadas e que são pouco discutidas, ainda que sejam importantes. Mesmo assim, acredito que alossexismo seja uma questão dentro do monossexismo.

Mesmo ao citar exemplos básicos de monossexismo contra pessoas multi - que são geralmente o foco de discussões sobre monossexismo - é possível ver que quase tudo não se aplica necessariamente apenas a pessoas multi. "Ou você gosta de homens ou de mulheres, o resto é frescura", "quem não é gay nem hétero só não se decidiu ainda", "todo mundo é meio assim" e "namorar a pessoa certa vai te fazer mudar de ideia" são expressões direcionadas não só a pessoas multi (sendo que isso não se reduz apenas a pessoas bi ou pan, e inclui orientações flexíveis), mas também a pessoas a-espectrais, de orientações fluidas e de orientações indefinidas.

Orientações fluidas e indefinidas muitas vezes são colocadas dentro de guarda-chuvas multi (ou até mesmo a-espectrais), mas vejo muitas pessoas nestes grupos não se sentirem confortáveis em se dizerem multi, ou em se dizerem multi em momentos que não se sentem atraídas por mais de um gênero. Por isso, acho adequado citar estes grupos separadamente.

Além disso, com o tempo, fui percebendo que há uma lógica monossexista repetidamente aplicada a diversas orientações, mesmo de pontos de vista "pró-bi" ou "pró-multi". Refiro-me ao apagamento e à intolerância contra identidades além de algumas "aceitáveis".

Muites conseguem ver que dizer que gay e hétero são as únicas orientações é monossexismo. Porém, lógica como "só existe atração por homens e por mulheres", "só existem pessoas L/G, hétero, bi ou assexuais" e "identidades multi além de bi e pan são inúteis" acabam sendo extensões deste pensamento.

Se os modelos de orientação são "homem que só se atrai por homens", "mulher que só se atrai por mulheres", "homem que só se atrai por mulheres" e "mulher que só se atrai por homens", é mais fácil estender este modelo para "pessoa que só se atrai por homens e mulheres" e "pessoa que não se atrai por ninguém" do que para "pessoa que geralmente se atrai por homens e às vezes por pessoas não-binárias sexualmente que só se atrai por mulheres e pessoas de identidades não-binárias femininas e neutras romanticamente".

É mais fácil ver atração por pessoas não-binárias como impossível a não ser que seja associada com categorizar estas pessoas como homens ou mulheres internamente; é mais fácil ver orientações a-espectrais na "área cinza" como desnecessárias; é mais fácil ver fluidez de atração como algo inexistente; é mais fácil julgar negativamente pessoas que não veem sua orientação como algo definível; é mais fácil querer empurrar todas as orientações "estranhas" para uma terceira orientação aceitável (geralmente bi), ignorando pessoas poli, toren, trixen, flexíveis, fluidas, que não querem ser categorizadas e afins que não veem tal simplificação como representativa de suas experiências.

Por isso, vejo qualquer esforço em "simplificar" e apagar/não reconhecer identidades além de um certo "grupo consagrado" como fundamentalmente monossexista, ainda que a retórica não seja exatamente sobre só considerar duas orientações válidas. Se existe reducionismo de gênero, é possível também falar de reducionismo de orientação, ainda que os conceitos não sejam completamente equivalentes porque reducionistas de orientação não necessariamente veem qualquer pessoa como "basicamente hétero" ou "basicamente lésbica/gay" (ainda que este tipo de retórica também exista).

Monoliminaridade e orientações mono que não são consagradas

O problema de considerar que monossexismo vai contra qualquer orientação que não seja "atração exclusiva pelo mesmo gênero" ou "atração exclusiva de um gênero binário pelo outro" é que existem orientações que são mono (no sentido de serem ou poderem ser definidas como atração por um gênero), mas que não se encaixam nestas definições.

São orientações que:

  • Definem atração exclusiva por um gênero, mas que não determinam quem está sentindo atração ou que determinam que quem está sentindo atração é uma pessoa não-binária (exemplos: feminamórique, home, neu caso "sem gênero" conte como "um gênero" nestas circunstâncias);
  • Definem atração por uma categoria, de forma que é possível alguém sentir atração por apenas um gênero e usar o rótulo, mesmo que também seja possível alguém sentir atração por vários gêneros e usar o mesmo rótulo (exemplos: iteri, cetero, proqua).

Dependendo do caso, pessoas de tais orientações podem não ser afetadas por retórica do tipo "ou você se atrai por um gênero ou por outro". Uma pessoa feminamórica não vai parecer indecisa em relação a sua atração única por mulheres. Uma pessoa viramórica não vai ter dificuldades em conseguir um relacionamento pelo medo de que a pessoa largue um homem por alguém de outro gênero.

Mesmo em casos de pessoas que poderiam se considerar multi que só sentem atração por uma categoria de gênero, não sei o quanto as mesmas suposições existentes sobre alguém que sente atração por múltiplos gêneros ("vai trair com outro gênero/sentir falta de alguém de outro gênero", "deve querer ter sempre mais de uma pessoa na cama", "é indecise sobre por quem se atrai", etc.) são direcionadas a pessoas que afirmam só sentir atração por pessoas de gêneros femininos, ou por pessoas xenogênero, ou por pessoas não-binárias.

Ainda assim, tais orientações são vistas como supérfluas ("muita gente sente essa atração e se define com rótulos que mais pessoas entendem"), inexistentes ("só existe atração por mulheres ou por homens"), específicas demais ("só use gay/hétero!") e temporárias ("eu também achava ser isso, mas eventualmente percebi que só estava me escondendo atrás de rótulos que ninguém conhece para não ter que lidar com o estigma de ser bi/lésbica/gay"). E estas opiniões são consideradas monossexistas quando são direcionadas a quem é multi.

Desta forma, seriam orientações como feminamórique monodissidentes? Seriam pessoas proquu que só se atraem por pessoas mascugênero ou pessoas iteri que só se atraem por maveriques monodissidentes? Eu não acho que faz muito sentido encaixá-las nesta definição. Mesmo assim, são orientações que sofrem com retórica monossexista, ao menos até separarem estas questões de monossexismo para deixar o conceito só para quem não tem como classificar a própria orientação como mono.

4. Periorientismo

Periorientismo talvez também seja uma cunhagem minha, mas não tenho certeza. É o sistema que prioriza pessoas que podem descrever sua orientação de forma precisa sem separá-la em vários tipos.

Alguém que só diz que é demibi, por ser demibi em qualquer tipo de atração que considere relevante (sexual e romântica, na maior parte dos casos), é periorientade. Alguém que é lésbica em sua orientação sexual e oniarromântique em sua orientação romântica é variorientade.

Existem pessoas que só consideram quem tem orientação sexual e romântica diferentes como variorientadas. Pessoalmente, não vejo porque alguém que é assexual, arromântique e poliqueerplatônique não deveria ser considerade variorientade, quando também deve enfrentar questionamentos sobre como é possível alguém não sentir certos tipos de atração mas sentir outros, uma gama menor de relações porque a maioria procura alguém que sinta atração sexual e romântica e exigências de só categorizar ou priorizar uma de suas orientações em detrimento do resto.

Existe também a questão de pessoas poderem ser tecnicamente variorientadas mas se colocarem como periorientadas, como pessoas que se dizem assexuais bissexuais por verem o rótulo bissexual como importante ainda que só sejam bi em orientações além da sexual, pessoas que se dizem lésbicas multi sem querer categorizar tais orientações em tipos diferentes mesmo quando são tipos diferentes e pessoas que são multi e/ou a-espectrais que sentem atração em condições diferentes e/ou por gêneros diferentes em tipos diferentes de atração mas que "cobrem" isso usando termos abrangentes. Não acho uma boa ideia categorizar tais experiências como periorientadas ou variorientadas sem permissão, mas acho que de qualquer forma tais pessoas são prejudicadas por periorientismo.

O padrão é ser periorientade. Não é à toa que vários lugares só colocam orientação como orientação sexual, sem fornecer espaço para que pessoas falem de suas orientações românticas, alternativas, queerplatônicas ou outras que desejarem. Não é à toa que se alguém disser que é pan, a suposição geral vai ser que a pessoa é pansexual e panromântica, ainda que uma pessoa pan possa ser panalternativa, caligorromântica e abrossexual.

Intolerância, apagamento e ausência de informação sobre pessoas variorientadas são frequentemente considerades questões a-espectrais, pelo conceito moderno de variorientação ter sido popularizado em espaços assexuais. Embora seja importante considerar periorientismo ao falar sobre questões que comunidades a-espectrais enfrentam, também é um problema que afeta pessoas variorientadas alo.

A questão alossexista de ver pessoas a-espectrais como incompletas por lhes faltarem atração às vezes serve como justificativa para que pessoas periorientistas "aceitem" a existência de pessoas a-espectrais variorientadas (ainda que de forma condicional e restrita, assim como pessoas heterodissidentes em relacionamentos duáricos também só recebem uma certa aceitação condicional e pouco firme de alguns grupos). No entanto, estas pessoas se mostram como periorientistas quando problematizam, criticam, fazem chacota e/ou duvidam de pessoas que sentem atração por mais gêneros em sua atração sexual ou romântica (como pessoas heterossexuais polirromânticas ou pansexuais que são gays em sua orientação romântica). A possibilidade e existência de pessoas que são alo e sentem atrações diferentes por gêneros diferentes (como pessoas gays heterorromânticas) também é frequentemente vista como impossível, ridícula e afins, ainda que uma outra pessoa já tenha se aberto como tal.

Periorientismo é uma questão que cabe dentro do monossexismo, já que qualquer pessoa variorientada não pode ser completamente mono (assim como qualquer pessoa a-espectral não pode ser completamente mono, já que isso envolve uma atração considerada "completa").

Síntese...?

Meu ponto com tudo isso é apontar que a orientação hétero centralizada pela heteronorma não é apenas formada pela definição de hétero como uma identidade que pode existir em contextos heterodissidentes. Heterossexismo coloca a orientação padrão/ideal/normal como:

  • Duárica (atração de mulheres por homens ou de homens por mulheres);
  • Definida por atração por apenas um gênero (mono, sem fluidez, flexibilidade, dúvidas ou atração por pessoas não-binárias);
  • Frequente e constante (alo, sem fluidez);
  • Periorientada (a pessoa tem que ser hétero em todas as orientações utilizadas para formar relacionamentos relevantes para a sociedade normativa);
  • Bem definida (não querer declarar fidelidade definitiva ao rótulo hétero só é permitido quando é para normalizar a identidade hétero, fora isso é um desvio inadequado);
  • Uma única orientação, pois as outras não existem ou não merecem nomes.

Pessoas que conseguem mais ou menos preencher alguns dos requerimentos podem ser coagidas a fingir que preenchem os outros. Pessoas que nitidamente não conseguem preencher os requerimentos são excluidas da sociedade heteronormativa ou de partes dela.

Porém, esta lista só leva em conta hétero como orientação por si só. A questão é que, num contexto eurocêntrico ocidental, mesmo pessoas que preenchem os requerimentos da orientação hétero podem não ser completamente reconhecidas como tal, por conta de heterossexismo ter sido formado de forma muito interligada com outros sistemas de opressão.

Novamente, não estou falando que a definição de heterossexismo como o sistema que prejudica pessoas heterodissidentes está errada, ou mesmo incompleta. Porém, quando se fala sobre heterossexismo de forma mais abrangente, pode ser importante também levar em consideração quando grupos hétero não são vistos como tal.

Sexonormatividade

Sexonormatividade é uma palavra geralmente encontrada em contextos assexuais, e que é usada de forma muito similar a alossexismo. Porém, há lugares que mencionam que pessoas que não são assexuais também podem sofrer com sexonormatividade. Assim, acredito que sexonormatividade não seja somente a priorização da alossexualidade, mas também a ideia geral de que todo mundo precisa querer sexo, e de que todo relacionamento que envolva compromisso precisa envolver sexo.

Assim, pessoas com repulsa a sexo (algo que não é exclusivo de pessoas assexuais e nem de pessoas heterodissidentes em geral) ou que se recusam a fazer sexo em circunstâncias esperadas" podem sofrer consequências por isso, inclusive consequências similares ao alossexismo e ao periorientismo: questionamento de como a pessoa pode ser de tal orientação quando não quer sexo, pressão para que a pessoa faça sexo quando não quer, acusações de que a pessoa precisa ser "consertada", etc.

Amatonormatividade

Amatonormatividade é uma palavra que pode ser encontrada em vários textos sobre poliamor ou arromanticidade, mas ele surgiu em um contexto feminista. É um conceito que descreve o ideal social de alguém achar a pessoa perfeita, se apaixonar, formar um relacionamento e viver "feliz para sempre".

No caso de pessoas arromânticas, esse ideal de um dia achar o par romântico perfeito é ofensivo e tem uma conotação de "curar a orientação". No caso de pessoas não-monogâmicas, a ideia de ter um relacionamento só que seja perfeito é questionada não só em relação ao número de pessoas, mas também em questão de colocar uma busca por relacionamentos perfeitos como central e como um objetivo de vida. No caso de mulheres, amatonormatividade é um problema por haver aquele ideal de que toda mulher precisa ser uma mãe e ter cuidar de uma família como objetivo de vida, mais cedo e de forma mais forte do que acontece com homens.

Assim como sexonormatividade pode fazer com que pessoas hétero possam ser vistas como heterodissidentes em certas circunstâncias, amatonormatividade também pode pressionar pessoas hétero a buscar relacionamentos românticos quando não querem eles tanto assim, ou prejudicar pessoas hétero que "ainda" não formaram laços românticos em certa idade.

Cissexismo e diadismo

Ainda que pessoas hétero possam sentir atração por pessoas do outro gênero binário independentemente de sua corporalidade, existe a noção social de que um homem transando com alguém com um pênis é um sinal de que aquele homem sente atração por homens (por exemplo). Também existe a noção de que pessoas trans e hétero são "lésbicas/gays que decidiram ser do outro gênero binário", ou por considerarem expressões de gênero fora do padrão como "mais heterodissidentes" ou por verem pessoas trans como obcecadas por "enganar" pessoas cis e hétero ao conseguir fazer "sexo gay/lésbico" com elas.

Isso faz com que, por conta do cissexismo (pessoas cisdissidentes não são vistas como pessoas que realmente são de seu gênero), há a possibilidade de que pessoas trans hétero e/ou sues parceires hétero sejam vistes como heterodissidentes.

Outra coisa que acontece é um julgamento do quanto uma pessoa trans precisa "passar" (ser vista como cis) e/ou de que cirurgias precisa fazer para que tenha acesso à identidade hétero, ou para que sues parceires deixem de ser vistes como "queers enrustides".

Com pessoas ipsogênero (intersexo, mas que são do gênero atribuído ao nascimento), acredito que funcione de forma um pouco diferente. Nem toda pessoa intersexo é visivelmente intersexo, e muitas pessoas intersexo são vistas como "perissexo mas com alguma doença/síndrome/diferença". Então, por exemplo, uma mulher ipsogênero com cromossomos XY pode não ser necessariamente reconhecida como uma "ameaça" à orientação hétero de seus parceiros.

Mesmo assim, existem pessoas ipsogênero que são confundidas com pessoas trans por causa de efeitos hormonais (como homens com seios ou mulheres com barba), ou pessoas ipsogênero cuja genitália não é própria para penetração (por natureza ou por conta de cirurgias incompletas ou que deram errado). Eu não tenho histórias que possam confirmar isso, mas não duvido que tais pessoas possam passar por exclusões da sociedade hétero da mesma forma que pessoas trans.

Expressões de gênero não normativas

A ideia de que homens hétero são desleixados, não tocam em outros homens e não usam nada rosa e de que mulheres hétero são boas cozinheiras, vaidosas e emocionais na verdade não tem nada a ver com ser hétero: tem a ver com cumprir papéis de gênero. Porém, como já mencionei, isso acabou sendo misturado em uma ideia do que é ser hétero por questões históricas (de ver gênero e orientação como similares).

A pressão social para cumprir papéis de gênero em cima de pessoas hétero geralmente é mais focada nela mesma do que em questões de orientação, mas a aversão à heterodissidência pode ser usada como combustível para evitar ou atacar quem tiver comportamentos que não cumprem os papéis de gênero esperados.

Por exemplo: uma menina é excluída das outras na escola por gostar de jogar futebol; um menino é repreendido por querer uma bicicleta rosa; dois irmãos se abraçando em um lugar público são atacados por serem confundidos com um par romântico; uma adolescente é forçada a parar de usar calças camufladas e camisas retas. Nada disso demonstra ausência de atração duárica ou presença de atração pelo mesmo gênero ou por pessoas não-binárias, mas as intervenções provavelmente seriam justificadas de forma heterossexista.

Isso também inclui o julgamento de certos fetiches e de certas posições sexuais como indicações de que alguém não seria ("totalmente") hétero.

Outras possibilidades

Eu não cheguei a ler sobre isso a ponto de ter certeza sobre qualquer coisa a respeito, mas eu não duvido que outros fatores, como neurodivergência, raça, religião, participação em trabalho sexual ou qualquer outra coisa também afetem a percepção da sociedade heterossexista sobre alguém "realmente ser" hétero, para além de percepções estereotipadas de expressões de gênero em um contexto eurocêntrico.




Existe uma necessidade de combater e denunciar pensamentos advindos do heterossexismo mesmo dentro de grupos compostos por uma maioria ou totalidade heterodissidente. O objetivo deste texto é ajudar pessoas com pouco contato com questões relacionadas a heterossexismo a refletir mais sobre partes pouco divulgadas desta ideologia. Espero que este texto tenha sido informativo para alguém que teve paciência de lê-lo até o fim.

Algumas destas informações talvez fiquem obsoletas ou estranhas daqui a alguns anos, porque qualquer modelo teórico de opressão precisa se adaptar a novas conversas ou a informações previamente desconsideradas. Mas, no momento, este texto como está parece fazer sentido em relação ao material com o qual tenho contato.