001 - Apenas um lugar abandonado


Minha família é cheia de histórias e ruínas, quando falo de ruínas falo prncipalmente de imóveis abandonados que muitos das gerações atuais nem têm idéia que são herdeiros. Isso se dá em grande parte a um incompreensível esforço por ocultar as origens da família que começa por destruir todas as evidências dos mortos, incluindo documentos, e mudando o sobrenome dos que nasciam, obviamente no passado isso era bem mais fácil, o conceito de “nome de família” é relativamente novo para mim, por questões legais herdei o sobrenome de minha mãe e parcialmente dos meus avós, meus avós não herdaram o sobrenome de ninguém e cada um dos irmãos do meu avô tem um sobrenome completamente diferente, da minha avó não tanto, as irmãs e irmãos dela tem 1 sobrenome em comum mas antes deles, parece que esse sobrenome não existia…



Nas histórias que minha avó contava, ela disse que conheceu meu avô muito jovem ainda, eles brincavam juntos numa enorme casa com arquitura colonial que ainda existe a uma média distância de onde morávamos, essa casa era de algum parente do meu avô pelo que pude entender. Ele nunca falou sobre nada disso a ninguém e agora, depois de tantos anos já morto, essa história que pode ser verdade ou não, chega até mim num dos últimos dias de vida de minha avó.



Passei muitos anos reunindo provas, ter ficado preso por um tempo não ajudou muito, por mais que eu queira ser mais frio e racional, ainda tenho a cabeça muito quente, pelo menos haviam vários atenuantes e não foi por muito tempo, além do mais, há momentos que ter amigos é de extrema importância e considero que alguns outros detentos se tornaram como irmãos para mim.



Enfim, passei muitos anos reunindo provas, já tinha como reivindicar aquela propriedade, mas antes eu precisava ver o local para ter uma idéia do tamanho do trabalho que eu teria. Fui à pé, quase 1 hora de caminhada passando por uma parte realmente complicada socialmente do bairro mas era domingo de manhã, tão cedo que o sol só nasceu quando eu já estava perto do meu destino. Quando cheguei lá, subi numa parte do muro, a impressão que tenho é que o muro delimitava uma área enorme do terreno em seu tamanho original, mas havia aquele enorme pedaço de muro no meio de uma rua, os tijolos maciços indicavam a época em que aquilo foi construído e um muro mais novo, agora limitava a área do terreno do… solar(?) num tamanho que se encaixava nas histórias de minha avó embora evidentemente seja bem menor do que o tamanho original.



Subi nesse fragmento de muro que saltava para a rua, era verdadeiramente instável, me espanta que ainda não tenha caído. Lá de cima, além de muito lixo e mato alto, haviam muitos gatos.



– Você tem muita coragem de subir aí, ninguém nem passa perto desse pedaço de muro para não morrer esmagado.



– E imagino que você está aí só esperando ver o muro cair, não é mesmo?



ele fez que sim com a cabeça mas continuou falando:



– Essa casa velha aí é onde as pessoas da região costumam abandonar os gatos, muita gente da rua coloca comida e água para eles e tem umas ONGs que de vez em quando levam vários para campanhas de doação e até limpam um pouco o terreno para evitar que escorpiões matem os gatos. Também crio um gato, sempre que ele some venho procurar aqui, mas subo na grade, é mais seguro apesar das pontas todas.



Eu já tinha visto o bastante e poderia ter mais informações com o garoto que estava alí. Pedi para que ele se afastasse por causa da poeira, impulsionei o muro para a frente e desci como se estivesse descendo de 1 degrau. Eu estava coberto de poeira mas acho que o efeito impressionou e assim talvez fosse mais fácil dele me dizer tudo o que sabe sobre a casa. A estratégia funcionou e a partir de poucas perguntas ele falava empolgado sobre todos da rua, tudo o que sabia da casa e até sobre a mãe dele ser advogada, e isso entrecortado por várias perguntas sobre como eu fiz aquilo no muro e se eu era mágico e coisas assim.



Eis algo verdadeiramente conveniente, eu estava precisando de uma advogada e isso era algo que eu estava postergando sistematicamente, não gosto de lidar com advogados mas sendo intermediado pelo filho de uma, talvez seja menos desagradável. Perguntei se não era cedo demais acordar ela no domingo pela manhã, mas ele me disse que a mãe estava acordada desde as 4 da manhã para meditar. Neste momento admito o mal juízo que fiz dela, quem já não viu aquelas recomendações de coach? Mas a situação era diferent, ela era mais… mística, e entrar naquela casa cheirando a incenso, com imagens de Buda e apanhadores de sonhos no teto só mudou a direção da imagem que eu tinha dela, eu já estava achando a viagem perdida mas quando eu a vi admito ter mudado de idéia, era uma mulher calma mas firme, de postura distante e com certa desconfiança mas ainda com alguma amabilidade que fazia conquistar fácil a confiança das pessoas. Talvez nã́o tenha sido um tempo perdido…



– Senhora….



– Pode me chamar de Verônica ou até de Vera mesmo, fique à vontade.



– Então Verônica, como estou aqui lhe dando trabalho, vou manter a linguagem mais formal.



ela assentiu com a cabeça e continuei:



– Passei os últimos anos reunindo provas documentais que sou herdeiro daquela propriedade em ruínas do outro lado da rua.



Curiosa a reação dela, um misto de espanto e alguma tristeza…



– Se a senhora aceitar, pode me representar numa ação para o reconhecimento da posse da propriedade.



– Essa é uma casa complicada, você tem certeza que quer cuidar dela?



– Dediquei alguns anos de minha vida em buscar um meio para isso, de recuperar parte da história de minha família e poder ter de volta o que é meu.



– Entendo… Sei que pode perder a confiança em mim mas preciso alertar sobre algumas coisas… Imagino o susto que levou ao ver como é minha casa, cheia de coisas místicas e tudo o mais, mas foi essa a forma que encontrei de diminuir um pouco o clima pesado que tinha aqui, era algo sufocante. Eu e meu filho nos mudamos para cá a pouco menos de 1 ano e nos primeiros meses era impossível dormir com as batidas e estalos que ouvíamos na casa, teve um dia que até saí para a rua imaginando que a casa ia cair e então senti uma coisa horrível, eu estava me sufocando e com um forte enjôo ao mesmo tempo, caí na rua e quando consegui gritar, a família vizinha aqui do lado veio me socorrer e me falaram que tudo isso era por causa dessa casa que você tanto quer, há alguma coisa nela que mexe com todo mundo, tive de colocar tudo isso de incenso e fazer tanta coisa para conseguir até mesmo dormir mas ainda acordo de madrugada com pesadelos que trazem de volta aquela sensação horrível…



– Tudo bem, eu te entendo (detesto ter de fingir assim mas é o jeito, ela está visivelmente emocionada), prometo que quando eu ajeitar essa casa toda, tudo isso vai ter passado, tem muito passado que precisa ser revirado e limpo.



No total, passei quase 1 hora falando com aquela mulher entre dar conforto e esperança, o caso não é complicado e tenho provas mais que suficientes, mas ainda assim é bom que ela esteja engajada para que tudo ocorra o mais rápido possível. Ao sair de lá, peguei um ônibus numa praça próxima, lembro de ter vindo nessa praça só quando eu era criança, parecia igual a como era, só os brinquedos tinham mudado de cor e ganhado um pouco mais de ferrugem. O ônibus fazia um caminho bem direto para o centro da cidade, e passava por uma parte do centro que poucos ônibus passam mas que era justamente onde eu precisava ir.



A viagem foi curta mas interessante, acho realmente curioso como cada região até de um mesmo bairro tem ares tão diferentes, até ao passar de uma rua para outra como se houvessem fronteiras invisíveis. O começo da viagem foi numa paisagem bucólica e um tanto quanto saudosista para mim, com alguns traços de decadência, um clima que também tinha alguns toques góticos pelas grades e alguns prédios de estilo colonial que simulavam elementos góticos, estudantes de arquitetura realmente deveriam gostar de andar envolta daquela praça. Em seguida, casinhas humildes e terrenos cercados por muros baixos, quase uma viagem aos anos de 1950 se a rua não estivesse asfaltada, mesmo àquela hora da manhã haviam alguns idosos com cadeiras de balanço na frent de casa vendo os netos jogarem futebol na rua enquanto conversam besteiras do cotidiano, admito que foi impossível para mim não pensar nos meus avós. Pouco mais à frente barracas e butecos, cheiro de cerveja e cachaça no ar, algumas pessoas dormindo debruçadas sobre mesas de metal decoradas com logomarcas de cerveja e várias garrafas vazias envolta deles no chão, com certeza estavam bebendo desde ontem… Depois tudo voltava a ser residencial mas com grandes diferenças: muros altos, portões de alumínio, ninguém na rua e posteriormente ficava ainda mais… opressor, com altos prédios, câmeras e seguranças rondando as ruas em motos caracterizadas de tempos em tempos. Esse trecho me pareceu o mais longo ma sde repente cheguei ao meu destino, um grande pátio por trás de uma igreja barroca ainda em atividade tendo quase encostado em sua lateral um incoveniente viaduto que parecia dizer junto com os prédios todos, que não havia mais lugar para aquela antiguidade alí.



Me dirigi para debaixo da ponte, em toda grande cidade sabemos como são as pessoas que vivem lá mas havia um amigo meu aqui e esse era o escritório dele, espero que a esta altura do dia ele esteja acordado pelo menos para um almoço. Não falei em escritório em sentido figurado, ele realmente construiu um escritório aqui que de longe é imperceptível, até de perto é difícil de notar em boa parte do dia, ele fez primeiro algo como um barraco envolta de uma das colunas que sustentam o viaduto, segundo ele mesmo me falou, mas à medida que os negócios foram crescendo parece que esses ornamentos de concreto fazem parte das próprias esruturas e estão em todas as colunas, pelo menos ele tinha me dito em qual delas eu poderia encontra-lo.



– Mas olha só quem veio aqui no meu humilde cafofo!



Eu não esperava ser recebido de braços abertos por aqueles grandes olhos vermelhos.



– Manolo, desculpa eu chegar assim sem avisar…



–Que é isso? sinta-se em casa, inclusive tenho quartos à disposição, mas se quiser pode ser aqui mesmo enquanto a gente conversa, afinal não tem nada aí que eu já não tinha visto quando a gente tava na cadeia hahahahahahahaha.



– De boas, além de vir ver um amigo vim falar de negócios mas não desses negócios.



De repente ele ficou sério:



– Não acredito que tu é desses (e apontou para um mar de gente caída no chão), isso acaba com o cérebro e sempre imaginei que você era inteligente demais para querer ficar feito esse bando de zumbis, inútil.



– Não estou falando disso, vamos almoçar que a conversa é longa e enquanto a gente conversa vocẽ vai entender tudo.



– Só dizer de qual restaurante você quer que entragam aqui rapidinho.



Manolo me conduziu ao subsolo, eu realmente não imaginava que havia um espaço tão grande alí embaixo.



– Esta é a sala de jantar e onde costumo fazer reuniões e tratar de outras coisas… sensíveis. Desembucha logo mano.



Tirei do bolso da calça um envelope.



– Aí tem uma foto velha de uma casa bem mais velha ainda e o nome de uma pessoa, esse cara é um primo meu e ele deve ter reforçado essa casa, pelo que andei descobrindo por aí ele costuma contratar algumas de suas garotas de tempos em tempos, então quando receber uma ligação dele é só pedir para ela fazer ele dormir que eu mesmo entro e procuro o que preciso.



– Sério que ele faz tudo na casa dele?



– Ele vive sozinho, não se dá bem com ninguém e é neurótico por segurança, acha que ter cofres escondidos é manter tudo seguro. Peguei a transmissão das câmeras de segurança dele, nada é protegido, quando ele telefonar me avisa que aí te pago o valor que quiser quando eu sair de lá de dentro.



– E qual é a da foto dessa casa?



– Tem uma coisa que preciso que está lá dentro, como tu tem gente espalhada por todo canto o tempo todo, deve ser fácil localizar e saber sobre a segurança do lugar.



– Cara… Tõ me sentindo num filme de espionagem, isso vai custar caro e não tô brincando quanto a isso…



– Toma um adiantamento.



– Aí sim, amanhã devo te entregar as informações desse tal lugar, me passa teu email, não confio nessa porra de celular de jeito nenhum.



Terminado o assunto principal, ficamos conversando sobre os outros amigos em comum, assim eu soube do paradeiro de alguns que eu precisava entrar em contato, desde que saí da prisão só tenho me dedicado a essas coisas da casa, estou com a cabeça bem cansada de pensar só neste assunto, tem sido um alívio ter apenas uma conversa comum embora esquisita pra caramba em alguns momentos, se fosse em outros tempos eu olharia feio para esses assuntos mas o que posso fazer? Há pessoas que vivem como traficantes, cafetões, fazem contabilidade para as mais diversas quadrilhas, etc. E neste ponto que estou, não posso apontar o dedo para ninguém, a maioria desses que a gente citou na conversa nunca mataram ninguém, dá até para questionar se o que eles fizeram com muitas de suas vítimas foi algo pior do que a morte, uma condenação para toda a vida, só que é melhor afastar esses pensamentos da cabeça, há escolhas que nos exigem fingir que não vemos nada, é preciso não ter consciência sobre um monte de coisas, do contrário, nesse caso específico, não teria como fazer nada do que preciso. Usar esses que se mostraram desde o começo meus amigos é uma dessas coisas.



Cheguei mais tarde do que eu gostaria em casa, gosto do aspecto descuidado e parcialmente abandonado daqui, essas plantas todas com galhos atrapalhando a passagem pelo quintal é de alguma forma reconfortante para mim, não sei explicar o motivo, mas adoro a árvore morta bem em frente a casa, é como uma mão não-humana levantasse seus dedos tentando tocar a Lua e as estrelas. Tenho de voltar aos meus estudos, quando o momento chegar, não posso me dar o luxo de errar, não tenho este direito.



Quando se fala em ocultismo é muito comum existir alguma prevalência do sentido empírico da coisa, sempre é algo ligado a sensações e observações muito pessoais que buscam ver relações entre tudo, sonhando com um passado sempre mais brilhante e elevado do que realmente foi. Este também me parece ser um problema filosófico sobre o que é a tal da verdade e até mesmo se ela existe ou no máximo pode ser considerada um conjunto de interpretações sobre outras coisas. Resolvi seguir um caminho cuja prática exige método e o método exige muito estudo e paciência, não passei tantos anos desperdiçando minha vida a troco de nada, há um objetivo muito claro por trás de todas as minhas ações e meus estudos não são infudados, preciso ter certeza que tudo vai funcionar, de outro modo não valeria a pena nem começar a fazer nada.



De manhã vou ter de sair mais uma vez, preciso ver o Ogro, ele vai sair da cadeia essa semana e com certeza ele vai me ajudar, tenho uma história com ele lá dentro e ele acredita que o salvei, admito que até hoje não tenho certeza se eu causei algo nele ou ele é de fato psicótico e começou a alucinar. Eu estava mergulhado num transe quando ele viu um pássaro negro atravessar a cela, enquanto ele via o pássaro voar em nosso redor ele disse que parecia que estávamos numa sala redonda quase como um andar de uma torre com tijolos aparentes, e que depois que eu me levantei o pássaro pousou diante de mim e desapareceu. Não tenho como confirmar nada, eu estava num estado semiconsciente, mas a partir daquele momento ele demonstrou ter uma devoção quase religiosa comigo, acho que está na hora de eu fazer uma visita.



Admito que não dormi à noite, se já há um sentimento estranho ao se visitar um antigo colégio ou empresa em que trabalhou, é ainda mais estranho ir para a prisão só para uma visita, a questão aqui não são só as memórias, mas o próprio ambiente, mesmo com amigos presos, não é algo agradável, as revistas não são agradáveis, a desconfiança com quem entra, por mais que seja justificada pela lógica toda da penitenciária, praticamente joga na sua cara que você pode ser preso a qualquer momento de novo. Foi assim que eu estava quando entrei, ver um rosto amigável e sorridente parece tão anacrônico que também me fez sorrir.



– Grande Ogro, parece até que tu aumentou de tamanho desde que saí daqui.



– Se não tem muito o que fazer, tenho mais é que comer mesmo.



– Por falar nisso, sei que tu vai sair daqui semana que vem, tem onde ficar?



– Ter tenho, não é das melhores opções mas tenho…



– Então fica na minha casa se achar melhor, deixei o endereço anotado aqui mas em todo o caso vou ficar do outro lado da rua quando você sair.



– Pô cara… brigadão por isso…



Ele estava se emocionando e resolvi mudar a conversa para que ele se contenha. Aquilo tudo era bobagem, mas ele em minha casa ficaria mais fácil de seguir com meus planos, eu tinha de resolver o quanto antes o problema com meu primo e espero que ele chame uma garota de programa só semana que vem, assim estarei com a equipe completa. Tenho de resolver muita coisa essa semana, tudo precisa ocorrer de forma sincronizada.



Cheguei em casa na hora do almoço, abri logo meu email e como Manolo tinha prometido, estavam lá as informações que eu queria, apesar do email não ser criptografado o sujeito esperto fez tudo parecer um spam anunciando vaga para um colégio particular, justamente o colégio do meu primo. À noite eu precisaria ir lá, mas antes preciso confirmar algumas coisas num mapa.



Durante minhas pesquisas, obviamente descobri parte da história de minha família, ainda não consigo descrever inteiramente os segredos mas pelo menos tenho uma noção do caminho que preciso seguir para chegar lá e isso passa pelos locais que esses solares quase iguais uns aos outros foram construídos, a impressão que tenho é que eram cinco famílias distintas mas cujos casamentos ocorriam sempre entre si, esses solares eram aparentemente iguais, se traçarmos uma linha ligando cada um aos mais próximos, veremos que todos são equidistantes e portante, se traçarmos uma linha de cada um para todos os demais, teremos um pentagrama. Não entendo o que ocorreu para que o que é meu de direito tenha sido abandonado como foi, também não achei nenhuma referência sobre a “relíquia” que tem lá dentro, “relíquia” não é o termo correto mas é o termo que estou usando no momento. Só falta o do meu primo para completar quatro “relíquias” a minha vou deixar por último, tenho de estudar mais aquela casa.



Saí durante a madrugada, o sistema de segurança do colégio do meu primo era semelhante ao da casa dele, o que me fez pensar se ele tinha transferido o artefato que eu precisava para a própria casa… isso é bem possível, há grandes possibilidades que ele suspeite do que estou fazendo, tudo me indica que ainda há alguma forma de organização por trás, não sei os motivos do ramo de minha família ter sido excluída de tudo e do solar ser abandonado como foi, há muitas lacunas de coisas que nunca foram registradas e, sendo um pária como sou, é impossível até mesmo conquistar a confiança de alguém para me dizer o que realmente aconteceu. De alguma forma isso me motiva.



A invasão do colégio não foi difícil, a experiência adquiridas nos outros solares que invadi me serviram de aprendizado para agora, coisas úteis como pequenos equipamentos que me orientam a descobrir alçapões para o subsolo, é justamente o porão que preciso achar. Demorei algumas horas mas achei uma passagem quase secreta justamente na sala que meu primo usa para administrar a escola, o porão foi mantido intacto e imagino o trabalho que ele teve para convencer os trabalhadores contratados para as reformas a não chegarem perto de lá. Ele é bem gordo e um tanto desajeitado, sempre foi mais dedicado aos livros que aos esportes, desenvolveu muito pouco a coordenação motora e vendo o acabamento da sala, não duvido que ele tenha cuidado dessa parte da reforma manualmente, tenho nítida impressão que havia marcas de botão na tinta das paredes e arranhados nas laterais da mesa, faz tempo que não o vejo, mas isso tudo me dá uma impressão de como ele está agora, ainda assim ele não é alguém que se possa subestimar.



Como imaginei, o porão estava vazio, as antigas colunas circulares estavam empoeiradas como se ninguém tocasse nelas a pelo menos 1 século, observando o chão com cuidado foi possível perceber o caminho feito por 1 só pessoa tempos atrás carregando a urna. Tal fato não me desanimou, posso dizer que até facilitou as coisas, mas vou ter de esperar por mais alguns dias, felizmente tudo deve estar no mesmo lugar, tanto outros livros e manuscritos que preciso quanto a urna com a relíquia que tanto preciso.



Cheguei em casa já pela manhã e acordei durante a tarde, a advogada tinha me mandado algumas mensagens e ela parecia animada. Marquei uma reunião num lugar tranquilo: há um museu que tem uma lanchonete que sobrevive basicamente de preços abusivos cobrados a turistas e de lanches produzidos quase que em linha de produção para excursões de alunos do primário, fora essas cada vez mais raras ocasiões, o lugar ficava quase inteiramente vazio, no máximo aparecia algum casal de turistas mas pssavam pouco tempo, até os funcionários do museu sentiam um desconforto quase inexplicável lá, alguns ainda de acostumavam, a maioria evitava ficar próximo as obras por muito tempo. De minha parte, eu sentia como se o artista, cujo nome parecia guardar alguma história em si (Avar Malach), me transportasse para seu próprio mundo neste ateliê, e todas essas referências tribais e de religiões do mundo todo, convulsionadas de forma aparentemente caótica, me reafirmasse que estou no rumo certo e que devo mergulhar ainda mais onde todos só vêem caos e escuridão.



Admito que me impressionei com a pontualidade da advogada, minha experiência pessoal sempre me disse que não há muitas pessoas pontuais nesta cidade, mas como sempre, ela parecia transtornada, parece mais uma vez que vou ter de passar horas acalmando ela…



– Boa tarde.



– Boa tarde, li todos o material que você me enviou e realmente muito obrigada por ter feito aquele “mapa” para eu não me perder entre tantos documentos,



Pelo menos parece que agora ela está com um aperto de mão firme, também não parece que as mãos estão suadas, acho que ela só tem esse jeito que parece sempre ansioso mesmo… Tem gente que passa tanto tempo sob tanta pressão de tantas formas que isso parece enrnaizar na pessoa, olhando de perto e num lugar melhor para observa-la, este parece ser o caso.



– Obrigado mas admito que não fiz aquilo pensando em você, eu estava realmente preocupado com a celeridade do processo, afinal quanto antes entenderem que aquela casa é de fato minha, mais rápido me dão a posse legalmente, mas tem uma coisa que me preocupa, como está a casa em relação a dívidas de IPTU e outros impostos e taxas?



– Realmente está um valor milionário, mas não se preocupe tanto, da mesma forma que aquele terreno pode ser uma boa fonte de dinheiro para a prefeitura e outros órgãos públicos se as dívidas forem pagas na íntegra, é também um grande problema, você viu os gatos lá, também há cobras, escorpiões, pessoas que entram naquele terreno para usar drogas, se prostituir, e coisas do tipo…



– Imagino o quanto você se preocupa com o seu filho… mas e quanto àquela história que você falou daqueles barulhos e mal-estar…?



– Isso é mais tarde, as pessoas invadem aquele terreno no começo da noite, quando dá umas 22:00 já não tem mais ninguém por perto. O senhor não conhece a fama que aquela casa tem, e quanto mais tempo passa mais histórias cada vez mais criativas são contadas, não descarto um fundo de verdade como o senhor mesmo já deve ter entendido, e peço desculpas pelo meu desespero naquela ocasião e ao telefone depois…



– Ah, tudo bem, não precisa se preocupar com isso, o seu estado naqueles momentos eram inteiramente compreensíveis…



– Obrigada, eu estava até com medo que o senhor procurasse outra advogada, tenha certeza que vou em empenhar ao máximo para que este processo seja resolvido o quanto antes, afinal é também do meu interesse ter um pouco de paz na minha casa, mas voltando ao assunto… A prefeitura e até o governo estadual têm muitas despesas com aquele imóvel, há equipes de controle de pragas que de tempos em tempos aplicam venenos naquele terreno para matar escorpiões, carrapatos, criadouros de mosquito… Também aparecem ocasionalmente cobras, inclusive já levei um enorme susto com uma cobra coral em frente à porta de casa… Enfim, são muitos transtornos por todos os lados, a prefeitura até tentou desapropriar a casa para que servisse como posto de saúde ou algo assim mas encontrou muita resistência de órgãos que cuidam do patrimônio histórico porque isso acabaria desfigurando a arquitetura colonial, então ficou o empasse: restaurar sai muito caro, manter como está também e em todo o caso há despesas indiretas por todos os lados com policiamento, agentes de limpeza entre outros…



Foi bastante estranho como, não de repente, talvez seja melhor dizer, progressivamente enquanto falava, fixou a atenção em algum ponto mais ou menos atrás de mim e ao final, parecia que eu nem mesmo estava mais alí. Virei minha cadeira para o lado e procurei entre as esculturas do pátio, quase todas de cerâmica e metal o que ela tanto observava.



– Deixa eu adivinhar, está observando aquela escultura que parece uma coluna ou um obelisco? Esta é um das poucas obras do acervo que não eram obras do antigo dono deste ateliê, sei disso porque já trabalhei aqui muitos anos atrás quando eu era bem mais jovem, meu primeiro emprego foi nessa lanchonete e naquela época os preços já eram absurdos mas ainda nem tanto.



[esperei ela sorrir para eu poder continuar]



– Mas falando sério agora, tudo isso aqui foi de um fanático por religiões, não apenas uma, mas todas as religiões que consiga imaginar, vivia tão imerso nas teorias… que eu realmente acho que ele acreditava em tudo de verdade e as esculturas que temos aqui eram algo como um ato de fé dele, sua expressão religiosa, por mais que algumas delas pareçam profanas para certas pessoas e até mesmo erotizadas, ainda assim têm algo de sagrado nelas. Enfim, essa coluna que você ficou interessada foi recuperada de escombros de uma antiga construção aqui da cidade mesmo. Por coincidência isso foi no período que eu trabalhava aqui. Cheguei até a conhecer o velho Malach, mas ele faleceu poucos meses depois que comecei aqui. Eu sempre o achei bastante legal ainda que fosse meio… esquisito, dá até para dizer que a arte que ele produzia refletia perfeitamente a pessoa que ele era. Gostava muito de falar sobre história e ao conhecer uma pessoa ele sempre perguntava sobre a história da família.


– Imagino então que ele deve ter ficado bastante interessado pela história da sua família então.


– Com certeza, foi isso o que fez a gente se dar bem um com o outro logo de cara, pena que as conversas duraram pouco.


Conversamos ainda por quase 1 hora, foi bom ter tido uma conversa agradável e mais despreocupada além de que consegui dissuadir a atenção dela daquela peça em exposição, não é interessante para mim ela saber mais do que já sabe.