UM

De entre todos há um mais invisível que se destaca 

Naquele tempo, as pessoas acordavam mal o dia raiava e punham-se em cima das pernas tal como hoje, mas durante mais tempo e sempre sem queixume, pois não tinham alternativas e a necessidade era muita. 

Em boa verdade, necessidade sempre houve; aliás foi a única fartura que este povo teve ou tem. O que até nem é tão mau como se pense, porque fome, sede, frio e tesão impeliram os deste lugar para diante desde muito antes de botaram Jesus Cristo Nosso Senhor em cima da Cruz, ámen. Ou como sói dizer-se, desde que o mundo é mundo.

Esta terra não é um sítio qualquer, pelo menos para os que aqui estão. Dizem-na sua, chamam-lhe nossa casa, nosso lar, pedaço ou cantinho, e não poupam esforços nem vontades para levantar muros de pedra posta, uns contra os outros, até a terra estar toda retalhada por posses de cada um, apesar de muitos forasteiros, arengando certo conhecimento, dizerem ser a terra toda una.

Pois não o é, longe disso. Entre os muros de pedra tosca há caminhos tão estreitos, que por andarem os homens e as mulheres ora carregando alfaias à ida, ora saindo carregados do que vão colhendo, não passaria um homem por outro cruzando-se em alguma daquelas cangostas. Os homens seguem só de idas para o lado do poente, pois o sol tem ali o seu caminho costumeiro de saída. Se a Criação é um exemplo, quem é o Homem para a contrariar?

Os dias estão mais enxutos, tendo as primeiras grandes chuvadas de outono das últimas semanas pausado a sua precipitação. As gentes andam atarefadas desde cedo na sua labuta, a retirar da terra o sustento ainda não recuperado das colheitas, surpreendendo muitas vezes os galos pelo seu madrugar. Muitos deles já nem cantam, ao verem desprezado o seu ofício despertador, já muito desconsiderado pelo toque do sino para a missa matutina. Aos barulhos de cavar, sachar, atar e guindar em todas as courelas, e o de amar em umas outras poucas, ouve-se por cima dos muros o cantar de mulheres que sabendo-se juntas, entoam orações a Nossa Senhora ou cantigas de fontes de namorados e romanceiros antigos, para atenuarem as dores de costas e braços, esquecendo-se do trabalho e do tempo. Os homens, mais recatados, assobiam as modas, concentrados em guiar árvores e arbustos através de podas e atilhos, como alfaiates de sebes e de bosques, cortando aqui e atando ali.

Alheios a estes lavores andam os rapazes pequenos, mais livres que as raparigas e os pássaros. Desobedecem à regra dos movimentos solares, percorrendo os caminhos estreitos em contramão, empunhando varas de salgueiro finas ou algum pau de sabugueiro com os quais disparam caroços de azeitona verde no lombo dos porcos cangados que andam a rilhar ervas de cheiro pelas valetas e fuçando os lameiros. E dali fogem roncando furiosos, quando os rapazes vão atirar lama aos vespeiros, ou fazer corridas com sapos, ou caçar uma grande serpente que se vai afastando aborrecida pelo sono interrompido. Ou vão espreitar ninhos nos buracos dos muros, ora apalpando ovos de posturas tardias, ora adivinhando pintos de plumas finas, medindo as profundidades escuras com as varetas.

Rapazes e paus de salgueiro não fazem boas parelhas. Na boca das mulheres costuma assomar o episódio de certo dia em que os rapazes encontraram um diabo a dormir numa sombra do caminho. Começaram a persegui-lo, atirando-lhe pedras. O diabo, mal acordado da algazarra dos rapazes, fugiu ligeiro às pedradas malfazejas das fisgas, escondendo-se num buraco de um muro. Mas a persistência dos rapazes é inesgotável e ao fim de algum tempo de procura, lá descobriam um par de olhos a brilhar numa cavidade entre as pedras toscas. O diabo bem se tentava desviar, mas os rapazes, primeiro com palhas centeias, depois com varetas de salgueiro, iam importunando o escondido como se catassem grilos num campo. Um dos rapazes, mais lembrado da época dos grilos, sugeriu que se mijasse para o buraco. Ao ouvir isto, o diabo escapuliu-se e nunca mais voltou. As mulheres rematam o seu conto declarando que não é Deus quem protege os rapazes, é o diabo que não quer nada com eles, raios os partam a todos!

Em boa verdade nem todos os rapazes são assim, porque no meio destes campos e destes muros há um rapaz que não é como os demais. Ele não tem fisga nem sabe atirar lama, ele não grita, não corre, não brinca, não joga, nem sequer fala. Passa os dias sozinho, sentado na mesma pedra plana. E ali fica, polindo a mesma pedra pelo assento, na coroa do muro mais alto da colina, durante todo o dia, sem que se dê por ele, mas confiando estar ele sempre lá, como uma figueira ou um lódão que tivesse nascido num olheiro da parede. De tanto ali ficar tem ele tisnada a pele pelo sol e gretados os lábios pelo vento frio, emaranhados os cabelos pela sujidade, esfiapada a camisa pelo tempo e descolorados os olhos pela solidão.

Para se construir uma gaiola de pássaros são precisas três coisas: vinte e oito varetas finas e flexíveis obtidas de árvore ou arbusto que faça ramos alongados e direitos, três metros de corda fina de quatro tranças, e duas horas de trabalho mesmo justas. Quer-se dizer com isto que um construtor menos dextro a aparelhar as grades poderá gastar o dobro em tempo, já que a matéria prima, estando escolhida, gasta sempre do mesmo.

Das razões que levam os homens a fazerem gaiolas pouco se sabe, mas será por inveja de não poderem voar ou pelo desejo secreto de manterem preso o que é livre. E se desde o princípio do mundo se armaram armadilhas para caçar por fome ou comércio desta, também desde aquele instante se pretendeu guardar o belo, o canoro ou o diferente para próprio deleite. A razão primeira e única de as gaiolas serem feitas, é servir o amor próprio.

Estas artes de escolher ramos e tirar-lhes fasquias e fitas, entrelaçá-las e atá-las, até compor as grelhas de uma gaiola, não se aprendem de um dia para o outro, e tão certo é isto como dizer-se que o primeiro gaioleiro foi Caim, que dela precisou para guardar a alma do irmão por ele morto. E aquele gesto ficou para sempre embebido nas varetas das gaiolas, pois é tão infame aquele que um pássaro prende quanto quem seu irmão assassina.

Porque a infâmia foi passando de pai para filho, e assim em diante, de tal maneira que se possível fosse procurarem-se as raízes dos homens como se procuram os ladrões nas vinhas, haveria de descobrir-se ser este rapaz sentado em cima do muro um descendente do primeiro filho, Caim, o assassino do primeiro irmão, Abel. E será também dele descendente quem por aqui anda a retirar o sustento dos campos, lavradores tal como o ancestral.

O descendente do infame está a desbastar taliscas finas de uns ramos cortados na noite anterior. Essa é a melhor altura para conseguir-se madeira flexível, desde que cortada e colhida durante o quarto minguante. O rapaz tece vagarosamente a grade com malha fininha de ataduras elegantes, compondo uma armação apoiada como se escondida entre as pernas. Não o faz por secretismo, mas por se sentir ignorado. Se os que lhe andam à roda sem sem o verem descobrissem, um dia, a qualidade daquele labor, haveriam de se quedar admirados, porque alguns deles imaginam o rapaz como se fora uma estátua daquelas sem braços e por força da precedência, sem mãos.

Está a compor-se, portanto às mãos deste artista tão desconhecido quanto ignorado, uma gaiola de entrelaçado de malha tão fina e tão ordeira, de paredes de malha tão densa mas perfeitamente translúcida, que dir-se-ia ser possível prenderem-se ali formigas se necessário fosse - pois para grilos já prisões existem e são bem conhecidas - ou munidos de obra tão perfeita, ousar-se capturar o próprio vento.

O plano do rapaz não é tão ambicioso, não pensara nisso, nem acharia muita finalidade em capturar vento, sendo bem necessário ao movimento das velas dos moinhos e das velas dos barcos, coisas tão distintas, mas julgando-se iguais. Em boa verdade, é uma forma de se cativar - não o vento, mas o seu movimento, pois é possível desviar-se o seu sentido, mas não o pode aprisionar. Assim acontece com as outras velas e a luz, que cativam o seu movimento enquanto arde um pavio, mas findo este, esgota-se a luminosidade. 

Enfunando as narinas como velas contra o vento entretanto mais levantado, o rapaz farejou no odor adocicado do funcho a mudança no tempo muito antes dos camponeses sentirem. Começou a arrumar o ofício, ocultando cuidadosamente a obra e a matéria prima num olhal debaixo da laje que lhe servia de assento, terminando a ocultação mesmo a tempo de ouvir o toque distante do sino do campanário da aldeia vizinha, que soando num timbre gafo e melancólico, anunciava sempre chuva e muita.

As gentes alvoroçaram-se imediatamente, agora avisadas do temporal, pois não se querem surpreendidas pela chuva nos campos. Enquanto as mães colocavam cestas à cabeça e chamavam os rapazes vadios, os homens arreavam alfaias e colheitas nos lombos dos animais ou dos próprios, e o vento crescia e assobiava entre os buracos dos muros, o rapaz esgueirou-se silenciosamente do seu poleiro e esperou junto ao carreiro na sua invisibilidade de fantasma diurno pela passagem dos últimos camponeses em fuga. Quando ficou só, começaram a cair as primeiras gotas. Removeu uma pedra que tapava uma gateira oculta na parede e de lá extraiu uma malha enrolada que desenrolou e estendeu levemente no chão. Chovia. 

Com umas varetas montou a malha numa gaiola tubular que armadilhou entre os muros do caminho, a meia altura, confirmando a firmeza da fixação. Depois, recolocou a pedra na gateira, afastou-se pelo caminho uns quantos passos e voltou-se para admirar o seu projeto, capturar uma alma penada.