O Passado Radical do Software Livre

É absurda a idéia de que o Free and Open Source Software (FOSS) seja apolítico. Como poderia um movimento que muda a forma como o software é produzido e altera as noções convencionais sobre os direitos dos utilizadores não ser político no sentido mais amplo? É certo, porém, que FOSS em 2019 parece ser menos político do que costumava ser.

Ainda assim, a ideia continua a ser generalizada. A antropóloga Gabriella Coleman, por exemplo, que pesquisou sobre o projeto Debian, no passado, uma das comunidades FOSS mais radicais, ainda descreve FOSS sendo, como um todo, “politicamente agnóstico“. Da mesma forma, muitos programadores insistem que o que importa é a tecnologia. Nem é difícil encontrar alas esquerda e direita trabalhando juntas em FOSS, embora nem sempre de forma harmoniosa.

GNU Meditando

As razões para acreditarem que FOSS seja apolítico não são difíceis de identificar. Por um lado, os fundamentos que regem muitos projetos maiores geralmente são instituições de caridade, e precisam ser cautelosas sobre o envolvimento político para não perder seu status livre de impostos. Adicionalmente, depois de ser condenado pela Microsoft® como “comunismo”, poucos participantes FOSS estavam dispostos a declarar qualquer posição política. Isso é especialmente verdadeiro nos Estados Unidos, onde, décadas após a guerra fria, expôr-se como um socialista só começou a tornar-se aceitável no último ano ou dois. Em algumas circunstâncias, manter sua cabeça baixa e [continuar] codificando foi apenas sensato.

Além disso, quão político o Software Livre aparenta ser depende muito das comunidades com as quais você interage. Para dar um exemplo óbvio, a Fundação Apache com suas licenças permissivas é muito menos político do que o Projeto GNU, com sua defesa de licenças copyleft e a sua ligação com a Free Software Foundation.

Quando analisada, a idéia de que Software Livre é apolítico é uma daquelas generalizações de meias-verdades — que contém umas gotas de verdade, mas, no final, é incompleta. Apesar de nunca ter sido o maior foco do Software Livre, o ativismo político permanece perto do coração do movimento. Às vezes, esse ativismo é apenas uma generalizada e, muitas vezes, ingênua desconfiança contra as empresas e o lucro, mas, freqüentemente, tem sido mais influenciado pelo pensamento radical do que a maioria das pessoas –mesmo os participantes — acredita.

O Radicalismo Esquecido

#FOSS é tão generalizado que hoje é fácil esquecer o quão radical essa idéia realmente é. Desde as Guerras Civis Inglesas do Século 17, os reformadores têm defendido que aqueles que fazem o trabalho deve controlar as suas condições de trabalho. Esta posição tinha limitados sucessos nos movimentos sindicais de meados do século 20, mas estes sucessos têm sido destruídos nas últimas décadas. Mas em sua própria esfera, FOSS tem levado a essa posição com ainda maiores sucessos do que o sindicalismo.

Pense nisso: projetos FOSS são associações voluntárias. Eles são auto-governo — nem sempre perfeitamente democrático, mas com o envolvimento da comunidade no governo. Embora atualmente muitos são pagos por sua participação, para muitos as recompensas intrínsecas do trabalho são tão importantes quanto a extrínseca. Em 2011, alguém — creio que foi Eben Moglen, o advogado, que enquadrou a Licença Pública Geral GNU [tradutor: GNU General Public License, #GNU/GPL] — respondeu às acusações de comunismo ao me dizer, “Não, isso é anarco-sindicalismo.” E se você procurar a definição do anarco-sindicalismo, ele não estava apenas brincando. Era perfeitamente correta. Calmamente, sem pressas, projetos FOSS em todos os lugares têm implementado quase ponto por ponto, as características do tipo de anarquismo que foi tentado na Catalunha durante a Guerra Civil espanhola. O Debian tem ido ainda mais longe através do voto no projeto político através de referendo e a eleição de seus líderes utilizando uma versão do Método Condorcet, que é amplamente considerado como o método de votação mais representativo já concebido. Realmente, a maioria dos projetos não foi tão longe quanto o #Debian, mas diversas vias de governança também são uma característica do pensamento anarquista.

No coração desse repensar o trabalho estão as Licenças #Copyleft, como a #GNU GPL. Nessas licenças, os detentores de direitos autorais voluntariamente desistem de direitos em sua política intelectual. Em contrapartida, os detentores de direitos autorais, juntamente com todos os outros, recebem os mesmos direitos em quaisquer modificações ou melhorias de obras originais. Embora o titular do direito de autor receba o crédito pelo trabalho, em consequência, Copyleft licencia direitos de propriedade do trabalho para todos que a usam. Ninguém nunca fala de Licenças Copyleft em termos de compartilhamento dos meios de produção — que soaria muito marxista. Ainda em vigor, é isso o que acontece sob Copyleft. A engenhosidade é que o objetivo é alcançado usando instituições convencionais, como Direitos de Autor.

Dadas tais fundações, não deve ser surpreendente que, embora você não precise ser de esquerda para participar do Software Livre, o movimento como um todo se inclina para a esquerda, especialmente em sua história inicial. Trabalhando em seus projetos de escolha, os participantes podem falar de programação, mas encontrá-los nas mídias sociais, e sua política tende a ser de esquerda. Ou olhe para a página inicial de Richard Stallman, com seu apoio para a pró-escolha, o Partido Verde e as liberdades civis — causas que vão muito além de questões como a neutralidade da rede que você esperaria que um técnico se preocupasse.

Este passado radical é mais óbvio antes da era Dot Com, quando os negócios descobriram o Software Livre pela primeira vez. Mesmo então, muitos anunciaram que as tecnologias de computador estavam prestes a revolucionar os negócios. Verifique as assinaturas do Manifesto Cluetrain, e vai encontrar os nomes de muitas das primeiras estrelas do FOSS.

Desde então, o passado radical do Software Livre ressurgiu mais de uma vez. Peter Brown, um ex-membro da revista New Internacional, esforçou-se muito para alertar os ativistas do FOSS durante seu mandato de cinco anos como Diretor Executivo da Free Software Foundation (2005-2010). O Software Livre, ele propôs, deve ser parte da vida de um ativista como a reciclagem — e, na verdade, poderia ajudar a reciclagem, estendendo a vida útil dos computadores mais antigos.

Da mesma forma, 2008-2012 viu a ascensão do Geek Feminists, que trabalhou para remediar o desproporcionalmente pequeno número de mulheres em FOSS. O resultado foi o surgimento de grupos de networking para mulheres em diversos projetos, programas de orientação como o GNOME’s Outreachy, e a implementação de Códigos de Conduta para reduzir o assédio em projetos e em conferências. No entanto, no momento em que Eric S. Raymond tentou em 2015 a reunião de conservadores do Software Livre contra o que ele via como uma conspiração contra os valores fundamentais do FOSS, o feminismo geek enfraqueceu, em parte devido a diferenças pessoais entre os seus apoiadores.

O declínio do radicalismo?

Mais recentemente, os resquícios do passado radical do FOSS desapareceu. A Free Software Foundation, no passado o centro do radicalismo, foi reduzido a um restante falando consigo mesmo. Ninguém mais assumiu sua vaga.

Talvez esta mudança é devido ao envelhecimento da geração de participantes que preferem rotina [tradutor: possivelmente jargão de programação] do que causas. Ou talvez os interesses dos negócios em reduzir o tempo para o mercado tornou-se tão dominante que não há espaço para outras perspectivas. Nos últimos anos, mesmo a distinção entre Software Livre e Código Aberto dificilmente desperta qualquer interesse. Assim como os ganhos do sindicalismo são considerados garantidos, assim também o sucesso do Software Livre não é mais do que um dado adquirido.

Pode o FOSS retornar às suas raízes radicais? Devemos até mesmo tentar? Eu não consigo nem mesmo imaginar de que forma um reavivamento poderia acontecer. Ainda assim, não importa o que o futuro reserva, eu acho que vale a pena lembrar que, em FOSS, idéias radicais sobre o trabalho fizeram algo extraordinário, calmamente, definindo as condições de trabalho de dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo.


Leia o texto original em:

http://www.ocsmag.com/2019/02/27/free-softwares-radical-past/