depois do solavanco - I

O ano é 20XX. Faz sol, muito sol. A chuva veio pouca naquele ano, mas ainda assim as plantas prosperavam e o vento soprava forte naquela seca.

Depois do grande solavanco mundial, tudo mudou. Aquela tensão dos anos 20 que crescia como que numa panela de pressão havia por fim estourado com a alteração climática: cidades costeiras inundadas, mangues colapsados, regiões inteiras interditadas devido às temporadas com frequentes furacões categoria 5. Toda aquela alteração havia espalhado fome e guerras que arrasaram o velho mundo.

Foram muitos anos de guerra. Na realidade, ela nunca acabou: se fragmentou em um sem fim de conflitos locais.

A ordem global das primeiras décadas caíra e fora substituída por um arranjo variado: "vazios" institucionais, povos tradicionais, salteadores de toda ordem e pseudo estados locais - que ainda que continuassem operando globalmente, tinham perdido espaço e poder.

Em alguns lugares, a devastação fora grande: a grande seca e fome dos anos 30 esvaziou todas as grandes metrópoles; hordas de desterrados e famintos ex-urbanos vagavam pelos campos. Alguns conseguiram refúgios mais seguros e se fixaram em roças entocadas em locais mais inacessíveis. Outras se aventuravam pelos campos cheios de ladrões, gangues, guerrilhas e forças paramilitares. Havia ainda os que estavam submetidos nas planícies aos fortes fazendas, seja por escolha, seja por aprisionamento, trabalhando sob forte vigilância no mecanizado e decadente agronegócio, nas piores posições possíveis: a manutenção dos colossais tratores de cultivo, na perigosíssima limpeza dos pulverizadores ou como guardas seja da propriedade ou das ultra cobiçadas caravanas de produtos agrícolas que iam para o mundo afora.

Tiniwaré era um andarilho ou fugitivo: um tuaregue pós colapso vagando pelo cerrado. Havia nascido na cidade mas ainda criança perdera sua família de sangue e adotara a família da rua, ou melhor, do mundo. Somente ouvira relatos das fazendas e não tinha o menor interesse em sequer passar por perto delas: preferia caminhar pelas matas e matos, sem ser visto ou ouvido, mas vendo a tudo e todas. Aprendera a comer do mato, mas sabia que aquela vida não era fácil, especialmente quando em território hostil. Por isso, buscava. Buscava encontrar outras tuaregues como ele, buscava uma terra minimamente segura para nela espalhar roças de mandioca e caju, cagaita e jatobá.

Naquele dia acordara preocupado: estava chegando a seca braba e ele não queria repetir o perrengue do ano anterior, em que arriscara a vida saqueando sorrateiramente uma caravana depois que os guardas caíram dormidos embriagados. Já havia escutado rumores sobre a existência de vilas e ajuntamentos de pessoas nas inacessíveis montanhas nas nascentes do Rio do Cal e noutras paragens. Depois de comer seu desjejum de mangas desidratadas e farinha de mandioca, levantou acampamento. Havia dormido num tedioso e denso bosque de leucenas, e esperava alcançar o córrego do lajeado ainda naquele dia. Empunhara seu facão e sua mochila, calçara sua sandália de pneu e partira, não sem antes desfazer quaisquer traços de sua passagem pelo local.

Estava em uma antiga área da periferia de uma metrópole, o que era extremamente perigoso. Os passos eram medidos e havia gente entocada nos escombros de galpões e casebres; não queria encontrar ninguém, pois além de perigoso significaria ter de negociar sua passagem - e seus mantimentos não estavam assim tão abundantes. Por isso, caminhava lenta e silenciosamente, pelos bosques de mamona, leucena e margaridão que se alastravam pelas bordas da cidade. Ao mesmo tempo, com sorte, poderia encontrar uma fruteira carregada e saciar sua necessidade de comida fresca.

Foi o caso: junto a um prédio semi desabado que se via engolido pela vegetação infestante, topou com um limoeiro e um abacateiro que ainda tinha alguns abacates. Mas não podia descuidar: deixou seus pertences numa árvore e preferiu ir pelo alto. A busca lhe rendera alguns abacates grandes e alguns limões, que lhe garantiriam um delicioso almoço para os próximos dias. Do alto visualizou seu caminho e planejou os próximos passos: teria que cruzar uma larga via expressa e depois atingiria o parque nacional.

Mas sabia que não podia simplesmente atravessar a estrada: o ideal era buscar uma passagem manilhada e fazer o caminho da água: sobre o asfalto, poderia ser avistado pelos binóculos de algum stalker oculto. Por isso, buscou identificar aonde o terreno rebaixava. Seguiu pelo meio do leucenal até atingir uma grota seca que ia com destino à via. Nestas grotas podia encontrar outras plantas, e era a hora de buscar possíveis remédios. Sabia que toda aquela penúria acabaria quando atingisse o cerrado pleno, mas antes tinha que vencer a terra arrasada, contaminada e monótona outrora urbanizada.

Por fim chegou próximo a via e encontrou a passagem manilhada, sua passagem mais segura mas que também tinha com seus perigos: poderia estar obstruída, ter cacos de vidro, arames farpados e escorpiões. Para estes casos extremos, reservava uma pequena lamparina a óleo para enxergar o caminho. Para sua sorte, o caminho estava relativamente aberto e pode atravessar sem maiores percalços: apenas um denso formigueiro que só se apercebeu quando as formigas já subiam por sua calça de lona e que lhe renderam algumas picadas dolorosas.

Ao chegar do outro lado, cuidadosamente sondou se não havia ninguém à espreita. Naquele lado, a mata havia crescido bastante e já cobria boa parte do asfalto. A presença de muito lixo - latas, plástico - denunciava que possivelmente estava próximo de alguma área anteriormente habitada, ou de uma zona de descarte. Tais áreas às vezes continham roupas ou outros utensílios, mas como esse não era seu objetivo, tocou em frente pela mata densa.

Em algum tempo, a grota ficou mais e mais funda, ao que penso que poderia estar próximo de uma nascente. Água era sinal de alegria, mas também de perigo, e ele não queria ser notado. Percebeu que uma das paredes suava algumas gotas, o que lhe bastava para coletar com um copo metálico e saciar sua sede. Ir em frente seria arriscado demais, por isso retrocedeu alguns metros a fim de alcançar a saída da grota e seguir pela mata seca. De fato, podia escutar o soar das gotas d'agua mais abaixo juntamente com vozes. Contornou cuidadosamente o local e pode enfim seguir uma linha mais reta pela mata que se adensava mais e mais.

Muito embora estivesse ainda próximo à autopista, sabia que ela delimitava uma zona: a partir dali arbustos densos e espinhosos espantavam a presença humana e consistiam numa chamada terra "selvagem", com poucos ou nenhum humano.

Depois de andar por algumas horas sem maiores percalços, chegou a uma colina com angicos, quando decidiu fazer uma parada para o almoço: farinha de mandioca, uns poucos nacos de carne seca e abacates. Se por um lado sua bagagem ficava mais leve, por outro seus mantimentos não durariam mais que uma semana. Por isso, sempre observava a vegetação em busca de frutas. A cidade tinha a vantagem de possuir seus abacateiros e mangueiras, mas o cerrado era menos farto, ao menos na aparência. Ao final do lanche, subiu no angico para observar à sua volta. Olhando para trás, sobre as ruínas da cidade subiam pequenas colunas de fumaça dos antigos habitantes; podia visualizar a área do antigo aeroporto, aonde funcionava a sede de uma milícia local. Não teve nenhuma saudade de quando esteve detido naquele local, só tendo conseguido fugir após a vista grossa de uma velha médica. Queria olhar para frente, não queria mais saber do que passara: estava determinado a chegar às vilas.