Indivíduo

por Voltairine de Cleyre

Ah, ficar uma vez de pé e sem hesitar na beira do abismo sombrio das paixões e desejos, uma vez para finalmente dirigir um olhar firme e corajoso em direção ao vulcânico Eu, uma vez, e nessa única vez, e eternamente nessa única vez, abandonar o comando que nos leva a fugir e nos esconder do conhecimento desse abismo, - negá-lo e desafiar o abismo a chiar e fervilhar como quiser, e nos fazer contorcer e tremer com sua força!

Uma vez e para sempre entender que não somos um aglomerado de pequenas razões bem-reguladas, reunidas na sala principal de nosso cérebro para receber sermões, ordenadas segundo máximas anotadas em cadernos, e movidas e bloqueadas por silogismos, mas uma profundeza sem fundo de todo tipo de sensações estranhas, um mar revolto de sentimentos varrido por tempestades de ódios e fúrias inexplicáveis, contorções invisíveis de frustração, refluxos de maldade, tremores de amor que nos levam à loucura e não podem ser controlados, expressões de fome e gemidos e soluços que martelam nosso ouvido interno até dobrá-lo para escutar, como se toda tristeza do mar e todo lamento das grandes florestas de pinheiros do norte tivessem se encontrado para chorar em conjunto naquele silêncio que somente você consegue ouvir.

Olhar para isso, conhecer a escuridão, a meia-noite, as épocas mortas em nós, sentir a selva e a besta interiores, - e também o pântano e o lodo, e o deserto desolado do desespero do coração - ver, conhecer, sentir ao extremo, - e então olhar para o seu próximo, sentado do outro lado do bonde, tão decoroso, tão arrumado, tão bem penteado e escovado e lubrificado, e perguntar pelo que etá por trás desse exteriror ordinário, - pensar na caverna em seu interior que possui, em algum lugar de suas profundezas, uma estreita galeria que se conecta à nossa - imaginar a dor que possivelmente o faz tremer até a ponta dos dedos enquanto ele veste esse plácido semblante, passado a ferro como sua camisa - pensar em como ele também se arrepia consigo mesmo e se contorce e foge da lara de seu coração, sofrendo em sua prisão domiciliar sem ousar ver a si mesmo - recuar respeitosamente dos portões do Eu das criaturas mais honestas e das menos promissoras, até mesmo dos criminosos mais depravados, pois sabemos da insignificância e do criminoso que há em nós - poupar a todos da condenação (e ainda mais do julgamento e do veredicto) pois sabemos do que é feita a humanidade e não tememos nada já que temos tudo isso em nós mesmos...