A subcultura de autodiagnósticos no Tumblr

Nota bene: este artigo se refere a transtornos mentais que não são autismo, ainda que mencione autismo em seu conteúdo. A subcultura de autodiagnóstico da comunidade autista é diferente da discutida aqui.

Me sinto estranho por estar escrevendo sobre isso. Primeiramente porque parece um assunto óbvio, e em segundo lugar porque ele é presente apenas em um canto da Internet. Eu tento, mas não consigo entender a razão das pessoas no Tumblr defenderem tão ferrenhamente autodiagnósticos quando é uma coisa tão obviamente errada e preocupante. Eu lembro de uma vez ter falado sobre isso na hotbox da AVEN e, para o meu alívio, a maioria das pessoas entendiam a razão de autodiagnósticos serem perigosos. Quem não entendia era justamente as pessoas mais jovens que vinham do Tumblr.

Eu já fiz parte da “comunidade de neurodivergentes” do Tumblr. Já publiquei várias coisas nas tags “ActuallyBorderline” e “ActuallyDissociative”. Também já fui a favor de autodiagnósticos. Hoje não faço nenhuma dessas coisas.

Para poder escrever este artigo, vou ter que contar um pouco da minha história.

Eu tinha dezenove anos (2013) quando fui diagnosticado com depressão e fobia social. Foi logo na primeira consulta com a psiquiatra. Depressão eu entendia, mas eu pensava que tinha ansiedade generalizada, porque meu problema ia muito além de contato com as pessoas. Mas ela era a médica, então eu não questionei. Alguns anos se passaram, e em 2016, alguns meses depois de sair da minha segunda internação, eu comecei a pesquisar a respeito dos meus sintomas, porque eu sentia que “só” depressão e fobia social não cobriam tudo o que acontecia comigo.

Foi quando eu descobri a comunidade no Tumblr. Pessoas na mesma faixa etária que eu, que tinham um problema semelhante: tentavam dar um nome ao que sentiam, sozinhos, ou por que não tinham acesso a um psiquiatra, ou por que o psiquiatra delas, como a minha, se recusava a dar diagnósticos porque acreditava que eles não adiantavam nada. Eu baixei uma cópia do DSM-5 e li as partes que eram convenientes para mim. Depois eu pesquisei na Internet sobre alguns transtornos: autismo, transtorno de personalidade esquiva e transtorno de depressão maior. Pesquisei meses a fio, conversei com pessoas que eram diagnosticadas com esses transtornos (por médicos ou não), fiz listas de sintomas e comparei com o DSM. Eu me encaixava nesses diagnósticos. Então eu passei a me considerar autista, esquivo e com depressão maior.

Falei com a minha psiquiatra a respeito e ela, depois de me dizer outra vez que não gostava de dar diagnósticos porque eles prendiam demais a pessoa, disse que talvez eu fosse de fato autista ou esquivo por conta das minhas questões sociais. Falei com a minha terapeuta a seguir, e ela disse que autista eu não era por razões X e Y, mas também não me disse que diagnósticos eu tinha. E ficou nisso.

Continuei a pesquisar sobre autismo, transtorno de personalidade esquiva e outros transtornos. Eu me encaixava em vários diagnósticos, mas não pegava todos os rótulos, porque no fundo eu sabia que eu não tinha tanta coisa assim. Sabia que, aos quinze anos, tive um transtorno alimentar, mesmo sem nunca ter sido diagnosticado: eu ficava horas e horas fazendo exercícios físicos, ingeria uma quantidade mínima de calorias por dia e não queria nada além de ser magro. Eu também tinha algumas certezas: eu tinha algum tipo de depressão desde muito jovem, mas nunca levei isso para ninguém além de amigos próximos por medo de ser recriminado, porque doenças mentais ainda eram tabus; eu sou uma pessoa muito ansiosa e agitada, então eu teria algum tipo de transtorno de ansiedade. Tudo se encaixava no que a psiquiatra dizia, mas eu sentia que ainda faltava alguma coisa: eu queria um rótulo que me descrevesse, alguma coisa para dizer que eu era. Não me bastava dizer “eu tenho depressão e ansiedade”.

(Quanto a isso, eu recebi diagnósticos que de fato me explicam apenas depois de quatro anos de observação pela psiquiatra e pelas terapeutas.)

Foi esse anseio por um rótulo que me fez ser a favor de autodiagnósticos. Como a maioria das pessoas na tal comunidade do Tumblr, eu dizia que a opinião médica não era necessariamente a única a ser levada em conta nas questões de saúde mental, porque, afinal de contas, quem além de você mesmo sabe como sua cabeça funciona? Eu seguia blogs no Tumblr de pessoas que reapropriavam tags sobre saúde mental, colocando “actually” na frente da doença: “ActuallyBorderline”, “ActuallyAvoidant”, “ActuallyDissociative”. A razão de fazerem isso era que, as tags “normais”, sem o “actually”, estavam cheias de estigma e negatividade. Por um lado, eles estavam certos: o estigma existe, e nós precisamos lutar contra ele, mas o que me incomodava nessa história era a maneira em que eles tratavam pessoas que tinham diagnósticos profissionais: privilegiados que não tinham aberto os olhos para a realidade - que autodiagnósticos existem, assim como pessoas que são “autistas e esquizotípicas”, ou “autistas, esquizotípicas e esquizóides” (diagnósticos que, de acordo com o DSM-5, não podem ser tidos ao mesmo tempo), que autodiagnósticos eram tão “válidos” quanto diagnósticos dados por um profissional de saúde mental.

Eu entendia que ter acesso a um profissional bom é um privilégio, mas eu discordava de autodiagnósticos serem capazes de substituírem o diagnóstico dado por um profissional. Depois de ser atacado diversas vezes por conta disso, eu saí do Tumblr e não voltei mais.

Autodiagnósticos não substituem um diagnóstico profissional por uma simples razão: ele é apenas um rótulo. Diagnósticos profissionais não são apenas rótulos, uma vez que implicam tratamento. A maior parte das pessoas que eu encontrei no Tumblr, porém, não estava interessada em tratamento: queriam apenas o rótulo, seja porque ele explicava o que sentiam, seja porque ele se tornou algo “diferente”. Essas pessoas tinham apenas checklists de sintomas e o DSM. Não tinham a experiência de lidar com pessoas diagnosticadas com os transtornos por anos e a experiência de ter estudado a história das doenças. Tudo o que importava para elas eram isso: “ActuallyBorderline”. Realmente borderline.

E daí que você é borderline?, eu pergunto. O que você pretende fazer com esse rótulo? E elas não faziam nada. Não procuravam ajuda, não procuravam formas de tratarem a doença ou mesmo lutar o estigma. Simplesmente exibiam o rótulo para quem quisesse ver, e usavam-no como desculpa para seus comportamentos: “não gosto de ajudar pessoas porque tenho transtorno de personalidade antissocial”, “às vezes sou um babaca porque sou autista”. Dentro dessas discussões, pessoas cunhavam termos para explicarem as relações sociais de pessoas “ND”, como chamavam a si mesmas, porque “doente mental” é um termo com muito estigma: “FP”, sigla para favourite person (“pessoa favorita”), é o termo que indica aquela pessoa única na qual um borderline confia. E se você é um borderline que não tem uma “FP”, você não pode ser borderline de verdade. Outros termos eram: “dependentes” para pessoas com transtorno de personalidades dependente e “inferior” e “igual” para pessoas com transtorno de personalidade narcisista, entre outros.

Essas pessoas também criavam publicações com conteúdo “relatable” (“possível de se identificar com isso”) e assim alcançarem popularidade dentro da comunidade. Se alguém que não concordasse com autodiagnósticos aparecesse, ele iam atrás da pessoa com fogo para queimá-la, fazendo publicações e publicações para mostrar o quanto “abusiva” a pessoa era por essa opinião. Eles não paravam para pensar que a maioria das pessoas contra autodiagnósticos eram pessoas “ND” também.

O curioso? De novo, isso só acontecia no Tumblr. Se eu via algo em defesa de autodiagnósticos em qualquer outro lugar, essa pessoa sempre tinha links para o Tumblr.

Mas por que isso é tão perigoso se fica apenas lá?

Veja: por se enclausurem dentro de um rótulo, essas pessoas não buscam ajuda de verdade. Elas acabam tomando e dando conselhos equivocados - agora mesmo na minha pesquisa eu vi um guia de “como ser um bom FP” - e fazendo mal a si mesmas. Ter, ou pensar ter, uma doença e não procurar tratamento é inútil. Não existe nada de “harmless” (sem dano) nesse discurso de que autodiagnósticos são “válidos”.

Outra coisa que autodiagnóstico implica é que não existe doença de verdade, no sentido de “eu sou ND e não doente mental, então não tem nada para se tratar” e isso é um equívoco. Doenças mentais não são consideradas doenças pelos comportamentos que as pessoas exibem, e sim pelo desconforto que isso causa para elas: no próprio DSM-5 está escrito em todas as listas: “este diagnóstico só pode ser dado se a pessoa exibir desconforto em relação aos sintomas”.

Eu compreendo que existam barreiras que impedem pessoas de procurar ajuda, especialmente em países que não têm sistema médico gratuito. Compreendo também que, mesmo se a pessoa encontrar um profissional, ele pode não ser um bom profissional. Mas nada disso qualifica pessoas que não estudaram Medicina para diagnosticar a si e aos outros com transtornos mentais. Também entendo o estigma, mas não é fugir dele que vai fazê-lo desaparecer.

Uma das razões para eu não querer escrever esse texto é porque e não consigo chegar numa boa solução. O mundo teria que educar os jovens para confiarem mais me médicos e compreenderem que não é à toa que o curso de Medicina é tão difícil e extenso.