Em 2016, eu fiz um seminário numa disciplina de Inglês a respeito de papeis de gênero. Meu grupo usou o famigerado biscoitinho da orientação para explicar as relações entre sexo biológico, gênero e sexualidade. Inicialmente não consideramos colocar pessoas não-binárias na explicação, até porque era para ser apenas uma introdução e o seminário tinha que ter no máximo dez minutos; mas colocamos, ninguém perguntou nada e foi assim. O resto do seminário foi explorar os papéis de gênero no século XX da maneira em que foi representada pela Disney. Todo mundo gostou, tiramos 10, o semestre acabou e eu nunca mais falei com ninguém do grupo.
Antes disso, talvez três anos antes, eu comecei a me identificar como uma pessoa não-binária. Eventualmente eu comecei a me designar como um homem transgênero, e, depois de alguns anos ainda, como apenas “homem”, sem o transgênero porque a simples ideia de não ser um “homem de verdade” me dava diversas formas de disforia. Eu sempre questionei meu gênero, desde criança. Quando eu tinha uns oito anos de idade, eu era muito tomboy e odiava vestir roupas “de menina” e ser tratado como menina. Meu negócio era carrinhos, dinossauros e dragões. Cor-de-rosa era uma abominação para mim. Aos treze anos, eu ficava feliz quando alguém dizia para mim que não sabia se eu era menina ou menino. Aos quinze, no entanto, eu comecei a me retrair e percebi que a maneira em que as outras pessoas me percebiam causava impacto, e que a maneira em que eu me demonstrava para os outros também causava. Aos dezessete, agora familiarizado com o feminismo interseccional, eu me considerava agênero – escondido, porque eu não queria que minha namorada soubesse. Quando disse isso ao meu professor de Filosofia, ele imediatamente me repreendeu: “não é questão de não ter gênero, mas sim de se identificar com um ou com outro”. Então eu desisti de ser agênero e “voltei” a ser uma mulher. O desconforto cresceu. Tudo foi por água abaixo por conta da minha saúde mental.
Mas isso é uma anedota.
Hoje, depois de uma conversa no Mastodon, eu joguei o seguinte questionamento na timeline:
já fiz essa pergunta, mas vou fazer de novo: pessoas que se consideram cis, por que vocês se consideram cis?
Acho que escrevi a pergunta de maneira errada. A maneira correta de perguntar seria: “pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascer, por que vocês o aceitam como sendo seu gênero?”
Eu não entendo algumas coisas: matemática, física e como o Cristianismo perdurou por tantos séculos. Tem também outra coisa que eu não entendo: como hoje ainda existem pessoas que aceitam o gênero que lhes foi designado ao nascer.
Para mim, isso é uma coisa simples: a binariedade de gênero existe por conta da binariedade de sexo biológico e por conta dos papéis de gênero da História Ocidental. Essas três coisas são invenções de uma sociedade que colonizou o mundo inteiro, e hoje não são mais relevantes por conta do advento do empoderamento de pessoas oprimidas. Para mim é extremamente simples desvincular tudo isso de mim e dizer que eu sou uma pessoa sem gênero. Isso porque eu nunca fui condicionado aos papéis de gênero que, digamos, minha mãe foi. Isso também porque eu sempre fui tomboy e nunca prestei atenção nas construções sociais em primeiro lugar. Então sempre foi fácil eu ficar questionando meu gênero: eu não fui condicionado a ser mulher em primeiro lugar e as pessoas raramente me percebiam como uma mulher.
Eu não parei para pensar que isso não é assim para todo mundo, especialmente pessoas que foram criadas em locais onde religiões abraamicas são muito presentes. Nessas religiões existe de maneira muito clara a diferença entre homem e mulher, por colocar os papeis de gênero em cada um deles de maneira que facilitou a opressão da mulher pelo homem durante séculos a fio. Essas religiões também ajudaram a criar a ideia de que só existem dois gêneros possíveis, e que a única sexualidade normal é a que envolve esses dois gêneros. Quando as sociedades colonizadas pela Europa se toraram “científicas”, elas não passaram a questionar a influência da religião sobre as construções sociais de gênero, sexualidade e sexo biológico, mas sim começaram a tornar tudo uma questão “médica”: um homem que tem relações com outro homem é um homossexual e isso é um transtorno psicológico; uma pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi designado ao nascer é transsexual ou transgênera, e ela obrigatoriamente sente desconforto (“disforia”) quando é tratada por esse gênero; alguém que nasce com a genitália “ambígua” é uma “anomalia” que deve ser consertada. E assim por diante.
Durante o século XX, com o empoderamento feminino, as feministas de segunda onda se agarraram ferrenhamente à identidade de mulher e, anos depois, quando a terceira onda feminista cresceu e se tornou interseccional – isto é, que lida também com a opressão de outros gêneros – ela se denominou “radical” por tratar apenas de mulheres, e mulheres cis-gênero. Sim, o gênero é uma construção social, a segunda onda diz, mas é uma construção social semelhante à de raça. Hoje o feminismo radical é tido mais ou menos como vilão por qualquer um que não seja uma mulher cisgênero lésbica ou heterossexual, e o feminismo interseccional é o que tem mais voz dentro da comunidade queer.
A comunidade queer também se expandiu em termos de identidade: hoje inclui gêneros antes ignorados ou apagados, os gêneros não-binários, mesmo que isso não seja algo que tenha grande visibilidade no movimento mainstream, e que muitas vezes seja feito de piada pelos conservadores.
Hoje é claro para uma parcela das pessoas que gênero é uma construção social que não precisa ser caracterizada pelo sexo biológico. Outras coisas podem influenciar o gênero de alguém: a maneira em que foi criado; a maneira em que a pessoa se vê; condições mentais; preferência de estética… Mas isso ainda não é completamente claro, porque dentro da militância mainstream e da cabeça dos aliados, o gênero ainda é binário ou “não aplicável”. Isso é ainda mais complicado em países que falam idiomas que têm apenas dois gêneros na linguagem “correta” (o português é um deles), porque ninguém sabe de que maneira falar com pessoas não-binárias, com que pronomes e linguagem tratá-las. Mas as pessoas ainda não incentivam a criação de pronomes novos, muito embora aceitem a assimilação de palavras estrangeiras no idioma natal por “falta de palavra melhor”.
A questão é: deixamos a binariedade para trás, mas ao mesmo tempo não. Nós não ensinamos as pessoas cis-binárias a questionarem o próprio gênero como uma construção social obsoleta, mas sim simplesmente pedimos que entendam nosso lado, nossa identidade, aquela que criamos com o nosso senso de estética, condição mental ou algo não relacionado ao sexo biológico. O fato é que a binariedade está tão enraizada dentro da sociedade, que apenas criar um conjunto novo de linguagem e criar gêneros e mais gêneros não é o bastante. Nós temos que começar do início: ensinar “cishets” a verem que cis-binariedade-heterossexualidade é na verdade uma construção social que não se aplica mais aos dias de hoje. Enquanto essa ideia não tiver repercussão no ativismo mainstream, as pessoas não-binárias estão fadadas a ficarem ocultas e serem apagadas, confinadas a um espaço que existe apenas na Internet, e, assim, sendo tidas como “invenções mirabolantes”.
Então, a lição de hoje é: questione tudo. Questione seu gênero, sua sexualidade, o tipo de atração que você sente. Questione a maneira em que você foi criadæ, a maneira em que isso influencia o jeito que você se vê e que os outros te veem. Abra a caixa, perceba que não existe caixa e encontre suas próprias respostas.
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