TRÊS

As Almas não Falam

Na noite cerrada pelo nevoeiro, ouviam-se nas trevas murmurantes da chuva uns pés ligeiros de vagabundo desregrado que mal vão deixando pegadas na lama espessa dos caminhos. Os passos rápidos pouco pousavam na bosta e dejetos misturados nas folhagens, matos e urze deixada a apodrecer sobre as lajes irregulares, e que uns meses adiante seria retirada para estrumar os campos. O caminhante seguia silencioso, apesar de há muito ter abandonado a povoação e os seus habitantes não serem esperados nestes lugares a desoras, calculando os seus passos no caminho bem conhecido tanto de noite como de dia, e bem lhe vai valendo a experiência, porque o trilho não é desprovido de escolhos. Por duas vezes ia topando nos trepos agudos dos raizeiros de urzes cortadas há dias durante a limpeza do caminho, mas que a sua boa memória descortinava no escuro. O caminho subia, sem ser íngreme, serpenteando entre umas manchas de bosque de castanheiros e de carvalhos, cujas copas ainda folhosas abrigavam o caminhante por momentos, substituindo o lençol da chuva cada vez mais esparsa por goteiras raras e grossas. Num dos renques do caminho ladeado por um muro baixo, a chuva parou de repente numa rajada mais forte do vento, que agitando as folhas do arvoredo e abrindo as nuvens num instante, tornou-as a encerrar noutra rajada. As nuvens assim arrastadas para norte, cada vez mais enxutas e finas, abriam uma e outra vez a noite estrelada e sem luar sobre os muros e arbustos agitados pela aragem, intervalando uma fosforescência estranha com a escuridão. Num desses momentos de breu forçado pelas nuvens, os passos descalços do caminhante foram surpreendidos pela boca negra de um carreiro estreito aberto na parede. Embrenhou-se na umbreira do carreiro, sentindo o odor a alfazema e alfádega a um palmo da cara, eivando o cume dos muros entre musgo e arroz dos telhados. Uns metros adiante, onde o carreiro era menos profundo, as nuvens afastaram-se novamente, notando-se à distância um obstáculo. O caminhante parou e acocorou-se, pousando cuidadosamente no chão o objeto que transportava debaixo do manto. Diante dele estava a armadilha que havia montado há poucas horas, mal se divisando a malha fina do seu conteúdo pelo fulgor dos olhos que o fitavam. Retirou da sacola umas braças de corda fina e enlaçou-a em torno do punho sem apertar, fazendo uma volta com a ponta. Ergueu-se e com a outra mão colheu umas folhas de cimbalária de um tufo do muro que meteu à boca, mastigando o sabor amargo e agradável. Guiado pelo cheiro, apanhou um punhado de alfádega que segurou na palma da mão, voltando a acocorar-se, enquanto cuspia a polpa de folhas mastigadas para a alfádega. Então fez passar a corda enrolada de uma mão para a outra, untando as fibras com a mistela. Barrou também os bordos da gaiola pousada no chão e aberta em duas metades com aquele unto. No final do lavor minucioso, começou a afivelar as duas metades, cruzando a corda à medida que a desenrolava da mão, depois no sentido inverso, como se estivesse a coser o cano de uma bota. Cosida assim a gaiola, pousou a parte mais estreita em cima da armadilha e abrindo o postigo diminuto desta, deixou a alma entrar pela ponta do funil. O rapaz sabia que estas entidades voláteis e sem peso não conseguem descer funis. Elevou a gaiola até à altura da cabeça admirando a sua presa, agora de olhos menos fulgurantes pela ação calmante da alfádega e da cimbalária. Era uma visão agradável, não somente pelo prodígio de técnica e de planeamento, mas também pelos sentimentos emanados pela presença do espírito. Tão expressiva, tão exuberante, tão completa e tão perfeita era aquela alma que só lhe faltava falar. Mas as almas não falam. Nem precisam de o fazer. As almas são discos de bronze polido em cuja superfície os vivos refletem sentimentos tão diferentes como o medo e a curiosidade, a revolta e a benevolência, a desconfiança e a paz. Quando alguém sente medo diante de um espírito, é a alma quem primeiro sente esse medo. Pois nesta noite já sem chuva e quase limpa de nuvens, neste carreiro negro abandonado entre muros e empunhando uma gaiola de vimes, o rapaz sente-se bem. O bem refletido num reflexo, sentido por ambos e gerado na expectativa e na concretização do encontro há muito adivinhado, pois estava aquele convicto de captar um espírito errante e o outro confiante de ser recuperado pelos artifícios de um vagabundo. Sentem o rapaz e sua presa uma curiosidade mútua, um espelho de sentir o outro tão diferente na forma, aparência e função, quão semelhante o eram na essência e na experiência, por tanto se disporem a observar o mundo. O rapaz pousou por momentos a sua carga sem peso, fitando calmamente os olhos vivazes que o sondavam, e desarmou a armadilha ainda retesada, retirando-lhe uma das varetas. Dobrou-a e escondeu-a novamente na gateira do muro, tapando-a com a pedra. Levantou-se e segurou na palma da mão a gaiola, cuja madeira se moldara perfeitamente à forma do espírito graças à cimbalária, equilibrando-se mais larga no topo, mais estreita na base, escura e quase invisível de tão etérea. Regressou então ao caminho, passando pelas ombreiras estreitas do muro, estendendo a mão por diante para passar primeiro a jaula. Rodou depois para sul, afastando-se cada vez mais da aldeia. O caminho era menos enlameado, subia serpenteando e demasiado aberto para abrigar o viajante do vento. Ao rapaz era mais difícil equilibrar a gaiola numa mão e apoiava-a na outra. Mesmo sem peso, a sua carga incomodava. O espírito, esse, já não o sentia tão livre e despreocupado.